Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil - 098 AS CAVAS DE OURO HISTÓRICAS DO JARAGUÁ Data: 11/09/2000 Celso Dal Ré Carneiro Instituto
de Geociências - UNICAMP
© Carneiro,C.D.R. 2000. As cavas de ouro históricas do Jaraguá. In: Schobbenhaus,C.; Campos,D.A.; Queiroz,E.T.; Winge,M.; Berbert-Born,M. (Edit.) Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil.
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RESUMO
A escassez de estudos específicos sobre as antigas cavas de ouro do Jaraguá - ou os vestígios que delas ainda restam - é tão digna de nota quanto sua importância histórica. O tombamento da região pelo Poder Público como área de "relevante patrimônio histórico" justifica-se por terem sido pioneiras na Província, já no final do século XVI. As ruínas a céu aberto foram consideradas antigas, por volta de 1822, pelo mineralogista José Bonifácio de Andrada e Silva. As "cavas de ouro do Morro Doce", como também são conhecidas, são sinuosas nos mapas e dispõem-se entre rochas metassedimentares e metavulcânicas do Grupo São Roque. Esta unidade do Proterozóico Superior esconde-se, a oeste, sob sedimentos da Bacia do Paraná, na região de Sorocaba. O sítio desperta interesse para estudos de mineração, mas a cava principal, à margem da Rodovia Anhangüera, encontra-se coberta de mato, solo, lixo e entulho. A demarcação dos limites da área de interesse seria a primeira etapa do processo de tombamento da área, levando talvez à construção de pequeno parque municipal. A seguir deveria ocorrer conscientização da população local sobre a importância histórica do sítio, para interromper o sistemático lançamento de solo e resíduos inertes de construção civil.
ABSTRACT
THE
HISTORICAL JARAGUÁ GOLD EXCAVATIONS
The scarcity of specific studies on the ancient gold excavations of Jaraguá -
or the vestiges that still remain - is as noticeable as its historical
importance. A public preservation of such an area of "relevant historical
heritage" is justified for the fact that they were pioneer in the Province
by end of the XVI century. The openpit mine ruins were considered ancient, by
1822, by the mineralogist José Bonifácio de Andrada e Silva. Also known as the
"Morro Doce gold caves", they are sinuous in maps, in a narrow zone
between metasediments and metavolcanics of the São Roque group. This Upper
Proterozoic unit disappears westwards, below the sediments of the Paraná basin.
The site is important for mining studies, but the main cave, marginal to the
Anhangüera road, is covered by bush, soil, garbage and waste. The limits of the
area of interest should be located first. The construction of a small park would
be valuable, but it must be accompanied by an effort to improve the awareness of
the local population on the historical importance of the site. This is the
unique way to stop the continuous accumulation of garbage and waste, for the
benefit of future visitors and scholars.
INTRODUÇÃO
A escassez de informações
disponíveis sobre as antigas cavas de ouro do Jaraguá não tem paralelo com sua
importância. O principal objetivo deste artigo é
resgatar alguns dados inéditos sobre as cavas ali presentes, dada a
inexistência de estudos específicos. Pretendemos justificar o tombamento da
região como área de "relevante patrimônio histórico" pelo Poder
Público. Dentre os inúmeros vestígios de antigas lavras de bens metálicos no
Pré-Cambriano paulista, as do Jaraguá, também conhecidas como "cavas de
ouro do Morro Doce", possuem singular distribuição geográfica, vinculada
às sinuosas dobras e associações litológicas locais.
O interesse científico do
sítio geológico pode ser avaliado tanto pela importância histórica – foi a
lavra pioneira mais próxima da capital paulista – como pelos numerosos
requerimentos de pesquisa mineral que, nas últimas décadas, espalharam-se na
área de ocorrência do Grupo São Roque, desde a região do Morro Doce até Santana
de Parnaíba, situada mais a oeste. Mesmo que as pesquisas estejam
interrompidas, os requerimentos de pesquisa mineral registrados junto ao DNPM indicam que a área
ainda interessa à mineração.
O cenário das antigas cavas
é desalentador: as ocupações urbanas da região do Parque Morro Doce e outros
loteamentos populares, vizinhos à área, expandem-se rapidamente, sob a
influência econômica paulistana (Carneiro,1996).
Se a vocação mineral do território paulista pode ser avaliada pelas ocorrências
conhecidas, nenhuma delas permitiria incursão tão profunda ao passado colonial
brasileiro. Ainda no século XVI lavrou-se ouro ali (Abreu,1973).
O esgotamento gradual e as expressivas descobertas em Minas Gerais deslocaram o
foco de interesse dos portugueses para esta última região.
SITUAÇÃO
As cavas antigas de ouro do Jaraguá situam-se no Planalto Atlântico à altura do Trópico de Capricórnio (Fig. 1), mais exatamente nas coordenadas 23º 26' S e 46º 47' W. Constituem-se de uma série de sinuosas escavações descontínuas e alinhadas segundo a direção N50ºW (Fig. 2), das quais a cava principal é também a mais próxima da Rodovia Anhangüera (Fig. 3).
Figura 1 - Mapa de localização da área do Morro Doce
Figure 1 - Situation map of the Morro Doce area
Figura 2 - Mapa
geológico
contendo a distribuição dos restos de cavas antigas e prováveis trabalhos
de pesquisa mineral complementar. Convenções: 1 - Cavas conhecidas; 2 a 9 -
Unidades litológicas: 2 - xistos, 3- metarenitos, 4 - filitos vermelhos, 5 -
quartzitos, 6 - rochas cálcio-silicáticas, 7 -
Anfibolitos, 8 - Anfibolitos bandados e metatufitos, 9 – Metaconglomerados, 10 –
Antiforma F2, 11 – Sinforma F2, 12 – Sinforma F3,
13 – Dobra neutra F3, 14 - Aluviões quaternários (Fontes: Carneiro,1983; IPT,1981).
Figure 2 – Geological
map with the distribution of vestiges
of ancient caves and probable complementary mineral prospection works. Symbols:
1 - Excavations; 2 to 9 - Lithological units: 2 - schist, 3 - metarenite, 4 -
red phyllite, 5 - quartzite, 6 - calcium-silicate rock, 7 - Amphibolite, 8 - Banded
amphibolite and metatuff, 9 -
Metaconglomerate, 10 – Antiform F2,
11 – Sinform F2, 12 – Sinform F3, 13 – Neutral fold F3,
14 - Quaternary alluvium (Sources: Carneiro,1983;
IPT,1981).
Figura 3 - Cava antiga de ouro do Morro Doce, fotografada
em 1981 (Foto Celso Dal Ré Carneiro)
Figure 3 - Ancient gold cave of Morro Doce, a
photograph dated 1981 (Photo Celso Dal Ré Carneiro)
O acesso mais fácil para atingir a área das antigas cavas é pela Via Anhangüera, a partir de São Paulo. Deixa-se no km 16,5 o trevo do Jaraguá e, à esquerda, entre os km 23 e 24, ao final de longa descida, adiante de placa rodoviária que assinala a posição do Trópico de Capricórnio, pode-se observar a escavação do Morro Doce. Essa cicatriz na encosta, em forma de "V", é cercada hoje por muitas casas, cujos moradores certamente ignoram sua natureza e significado.
HISTÓRICO
Theodoro Knecht, estudioso dos minérios paulistas, publicou em 1950 uma foto da escavação maior (Knecht, 1950, p. 26), em ângulo igual ao da cena que se tem hoje desde a Via Anhangüera, descrevendo-a como uma "escavação antiga" de ouro. A expressão, aliás, não lhe pertence. As ruínas de cavas a céu aberto foram consideradas antigas pelo mineralogista José Bonifácio de Andrada e Silva, por volta de 1822, em visita à Província de São Paulo. Na Capitania de São Vicente, essas extrações pioneiras anunciaram nossa vocação mineira - no final do século XVI - junto com as de Paranaguá. Há mais de 400 anos, muitos ali trabalharam, sob comando de Afonso Sardinha e seu irmão.
DESCRIÇÃO DO SÍTIO
Aspectos geográficos
Ocupações urbanas dominam
atualmente a região das cavas de ouro. A transformação da paisagem foi rápida:
em quatro décadas a urbanização vem substituindo em ritmo acelerado sítios e
chácaras da zona rural. Cada uma das cavas possui paredes muito inclinadas a
subverticais, desprovidas de vegetação e cobertas de material escorregado das
encostas. A faixa em que se distribuem as escavações estende-se segundo a
direção WNW por aproximadamente 6 km, com menos de 800 m de largura. Nas áreas
não ocupadas a vegetação remanescente é principalmente de eucaliptos e alguns
restos descaracterizados de mata nativa.
A cava principal acha-se
hoje coberta de mato, solo desabado, lixo e restos de demolições (Fig. 4). No interior da cava principal observamos, em 1982, a
existência de uma galeria suavemente inclinada, extensa de uma dezena de metros
ou pouco mais, conectada a um provável shaft vertical em sua
extremidade. Essas construções foram posteriormente soterradas. À beira
da Rodovia Anhangüera, persistem ainda duas galerias estreitas no filito
decomposto, parcialmente cheias de terra (Fig. 5), em corte ao lado de um posto
de gasolina desativado. As abóbadas superiores são curvas, à semelhança de
capelas, em padrão similar a outros encontrados na regiões de Embu e Guarulhos,
abertos para pesquisa de novos veios auríferos. Próximos a esse lugar, há dois
cemitérios, que seriam certamente ameaçados se houvesse nova corrida em busca
de ouro.
Figura 4 - A mesma cava de ouro, em foto de abril de 1996,
mais ameaçada pela expansão urbana (Foto Celso Dal
Ré Carneiro)
Figure
4 - The same gold cave, photograph dated april, 1996. The area became more threatened by the urban growth (Photo Celso
Dal Ré Carneiro)
Figura 5 - Aspecto de estreita galeria de pesquisa, quase soterrada,
cuja abóbada curva tem altura normal pouco maior que 1,2 m (Foto Celso Dal Ré Carneiro)
Figure 5 - Two narrow galleries for mineral
prospection, almost filled by soil. The
height is approximately 1,2 m (Photo Celso Dal Ré Carneiro)
Geologia regional
O complexo dobramento das
unidades de rocha (Carneiro et al., 1985) controla, na região do Jaraguá, as
dezenas de ocorrências minerais cadastradas (IPT, 1981). A faixa descrita
situa-se na zona de transição de um domínio de rochas metapsamíticas impuras,
intercaladas com membros metapelíticos, para um domínio de rochas
metacarbonáticas contendo numerosas faixas de metatufos e rochas
metavulcânicas. Dentre as rochas metapsamíticas impuras apresentam-se arenitos,
arcósios, grauvacas, quartzo filitos e, subordinadamente, conglomerados
polimíticos e quartzitos brancos puros de aspecto sacaróide, como os do Morro
do Quebra-Pé e do Pico do Jaraguá. Filitos avermelhados portadores de
bandamento diferenciado (Carneiro,1983) e raros xistos finos constituem as rochas
metapelíticas. Em afloramentos, as rochas metacarbonáticas são encontradas
totalmente decompostas, exceto a leste, na região de Perus, onde as pedreiras
de pegmatito e granito turmalinífero expuseram horizontes de rocha carbonática
sã. Os metatufos são normalmente rochas esverdeadas ricas em
tremolita-actinolita, oligoclásio, alguma biotita e opaco. Há ainda minerais
secundários, como epídoto, provenientes da decomposição de minerais máficos.
O bandamento diferenciado
é a feição planar dobrada mais conspícua. Dobras neutras verticais de planos
axiais orientados segundo a direção NNE deformam o padrão linear sinuoso das
estruturas precedentes, em especial as dobras portadoras de bandamento
diferenciado como foliação plano-axial. As cavas a céu aberto obedecem a esse
controle, estando delimitadas, em mapa, a uma estreita zona de filitos
vermelhos.
Inexistem
dados sobre a geologia da galeria de pesquisa, orientada segundo a direção NNE,
encontrada no flanco nordeste da cava principal, e tampouco do shaft vertical
que a sucede, de profundidade desconhecida. Essas feições desapareceram há poucos anos, devido ao
lançamento de solos e entulho. No prolongamento da cava principal, à direita da
rodovia, sob eucaliptos, foi recolhida uma amostra de veio de quartzo que
indicou 20 ppm do metal. Trata-se provavelmente de um
veio similar aos “vieiros de quartzo aurífero de Quebra-Pedras” (Knecht,
1950). A localização desta ocorrência coincide com o prolongamento da cava
do Morro Doce para SE, entre a Anhangüera e o Morro do Quebra-Pé, na
extremidade de uma cava (Fig. 2), junto a um dos cemitérios acima citados. Ao
microscópio eletrônico, a amostra indicou presença de ouro livre disperso em
pequenas manchas de limonita, sugerindo sua liberação a partir de processos intempéricos cuja ação sobre pirita aurífera teria
provocado liberação de ouro submicroscópico, acresção de ouro sobre núcleos de
cristalização e geração de partículas visíveis (IPT,1982). Amostras de
minerais primários não foram recolhidas.
Não se tem dados sobre
quando ocorreu o esgotamento das jazidas, mas os portugueses dispunham de
critérios razoáveis para orientar a prospecção: as prováveis galerias de
pesquisa (Fig. 5) orientam-se perpendicularmente à direção geral da foliação e
das estruturas locais. A lavagem e purificação rudimentares não atingiram o
material profundo, de difícil acesso, que exigiria técnicas mais avançadas de
localização e cubagem. O insuficiente conhecimento das mineralizações e da
complexa geologia local parece ter sido o fator determinante do insucesso da
pesquisa mineral, mesmo em tempos mais modernos.
MEDIDAS DE PROTEÇÃO DO SÍTIO
O abandono das antigas
cavas de ouro do Jaraguá é lamentável. Com o seu desaparecimento, perderemos
pistas de uma história de exploração mineral que data de quatrocentos anos
atrás... São Paulo precisa de museus ao ar livre, mas para o Morro Doce pode
ser tarde demais. Existe, é certo, uma pequena aldeia, longe dali, junto ao
sopé do Pico do Jaraguá, tida como a menor reserva indígena do Brasil, ocupada por
remanescentes de uma família de índios, que controlam o acesso à visitação do
precário "Tanque de Ouro", cujo funcionamento também remonta à época
colonial. Na região do Morro Doce, contudo, se não existir movimentação da
comunidade geológica, jamais haverá reversão no quadro acima descrito, pois o
fator tempo não está a nosso favor: dependeríamos de várias mudanças e,
principalmente, de forte decisão política dos governantes.
Deveria ser dada prioridade
máxima à demarcação precisa dos limites da área de interesse. O esquema
apresentado na figura 2 baseia-se em levantamentos de campo e interpretação de
fotos aéreas, sendo razoavelmente preciso, em que pesem ser os dados de
1981-82. A seguir deveria ser iniciada a conscientização da população local
sobre a importância histórica do sítio, para interromper o sistemático
lançamento de lixo, dejetos e resíduos inertes de construção civil. A proposta de construção de um pequeno parque municipal no
bairro do Morro Doce, junto à cava mais notável, seria imprescindível, desde
que atrelada a um processo de tombamento da área pelos órgãos responsáveis.
Na forma em que se
encontra hoje, a área não resistirá a mais uma década de abandono. O contraste
é absoluto com os belíssimos ecoparques de Salto e Itu (ver Ciência Hoje, n.
112, p. 24-31, 1995). Sem memória, não há história, como lucidamente esses e
tantos outros exemplos o demonstram. Deve-se advertir que, em breve, tais
testemunhos do passado serão sufocados pela expansão urbana. De um lado da Via
Anhangüera, eles convivem com os cemitérios; do outro, com a cidade e seus
detritos, que logo riscarão do mapa o caminho tortuoso, se nada for feito para
conter a "urbanização" mal-planejada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Almeida, F.F.M. de; Carneiro, C.D.R. 1995. Geleiras no Brasil e os parques naturais de Salto e Itu. Ciência Hoje v. 19, n. 112, p. 24-31.
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