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SIGEP

Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil - 018

GRUTAS DE IRAQUARA
(Iraquara, Seabra e Palmeiras – BA)

Data: 30/09/99

Fernando Verassani Laureano
laureano@gcsnet.com.br

Francisco William da Cruz Jr.
cbill@usp.br

Instituto de Geociências-Universidade de São Paulo
Rua do Lago 562, São Paulo-SP, Brasil

© Laureano,F.V.; Cruz Jr,F.W. 1999. Grutas de Iraquara (Iraquara, Seabra e Palmeiras, BA). In: Schobbenhaus,C.; Campos,D.A.; Queiroz,E.T.; Winge,M.; Berbert-Born,M. (Edit.) Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil.
Publicado na Internet em 30/09/1999 no endereço http://www.unb.br/ig/sigep/sitio018/sitio018.htm 
[atualmente https://sigep.eco.br/sitio018/sitio018.htm]  

Versão Final Impressa:
© Laureano,F.V.; Cruz Jr,F.W. 2002. Grutas de Iraquara - (Iraquara, Seabra e Palmeiras), BA - Um dos principais sítios espeleológicos do Brasil. In: Schobbenhaus,C.; Campos,D.A. ; Queiroz,E.T.; Winge,M.; Berbert-Born,M.L.C. (Edits.) Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil. 1. ed. Brasilia: DNPM/CPRM - Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos (SIGEP), 2002, v.01: 461-468.

[VER CAPÍTULO IMPRESSO]

(A referência bibliográfica de autoria acima é requerida para qualquer uso deste artigo em qualquer mídia, sendo proibido o uso para qualquer finalidade comercial)  

Resumo

A ocorrência de uma expressiva densidade de cavernas, algumas delas consistindo grandes sistemas de cavernas, faz com que a área nas proximidades de Iraquara (BA), região da porção da Chapada Diamantina, constitua um dos principais sítios espeleológicos do Brasil. Essas cavidades foram esculpidas em rochas carbonáticas neoproterozóicas da Formação Salitre (Grupo Una), no extremo sul da Bacia de Irecê, e guardam, além de uma incontestável beleza cênica, importantes registros culturais e científicos, os quais compõem um patrimônio de importância e interesse multidisciplinar. Estudos geoespeleologicos e morfológicos de cavernas locais, revelam uma história evolutiva multifásica, que envolveu fases de abertura, ampliação, assoreamento e, por fim, desobstrução e erosão de parte dos condutos. As cavernas além de constituírem importantes reservatórios para o abastecimento de água são também atrativos especial para atividades ecoturísticas na região.

Introdução

A região de Iraquara é responsável pela manutenção subterrânea da grandiosidade e beleza de um dos mais expressivos conjuntos paisagísticos do Brasil, a Chapada Diamantina. As redes de galerias existentes compõem um dos mais significativos sítios espeleológicos do país, onde, atualmente, encontram-se registradas mais de uma centena de cavernas, constituindo, possivelmente, o local de maior densidade de galerias subterrâneas por unidade de área, no Brasil (Auler & Farrant, 1996). Essas grutas exibem formas e padrões variados, muitas delas atingindo dimensões quilométricas de desenvolvimento.

Além de seu aspecto cênico, as grutas de Iraquara conservam um conjunto patrimonial-científico de relevância multidisciplinar, devido aos seus registros de importância geológica, geomorfológica, paleontológica, arqueológica e biológica. Quilômetros de condutos de grande porte constituem as marcas da atuação dos mecanismos erosivos preservados em subsuperfície, os quais resgatam os processos geomorfológicos atuantes na edificação do modelado atual. O registro sedimentar associado às galerias revela as condições ambientais nas quais a região vem evoluindo durante os últimos milhões de anos da história da Terra. Além disso, esses sedimentos contêm registros fossilíferos da Megafauna Pleistocênica, tais como preguiças gigantes (Scelidodon Cuvieri) e tigres-dente-de-sabre (Smilodon populator) que ali viveram antes de serem extintos deste planeta. Os condutos inundados são habitados por pequenos bagres cegos e albinos, de grande importância para a biologia, pois correspondem a uma nova espécie descrita somente na Lapa Doce, até o momento (Liana Mendes, 1999, com.verbal). Algumas grutas, como a Lapa do Sol e o Abrigo Santa Marta, exibem ainda, em suas entradas, painéis de pinturas rupestres, que constituem uma prova, ainda pouco investigada, de civilizações pré-históricas que habitaram a região.

Mas não é só em relação à ciência que essas cavidades naturais têm sua importância. O aqüífero cárstico é um dos principais recursos naturais da área, uma vez que os cursos superficiais são preferencialmente secos e a água disponível nos condutos inundados constitui a principal fonte de água para consumo humano e desempenho das atividades agrícolas. O crescimento do ecoturismo em toda a região da Chapada Diamantina vem também chamando a atenção para o aproveitamento turístico dos diversos cenários subterrâneos, sendo que, atualmente, 4 cavernas já se encontram inseridas no roteiro turístico da região: Lapa Doce, Gruta da Torrinha, Buraco do Cão e Gruta da Pratinha.

"Iraquara - a cidade das grutas" é o que diz o letreiro construído no trevo que dá acesso à cidade. Seja bem-vindo a mais um monumento natural do território brasileiro.

Localização

A área do sítio está situada na porção centro-norte da Chapada Diamantina, região central do estado da Bahia (Figura 1). O principal meio de acesso à cidade de Iraquara, que dista 450km de Salvador, é pela BR-242 (Rodovia Salvador- Brasília) até a localidade de Carne Assada, de onde se vai pela BR-122 (Estrada do Feijão) até Iraquara. Seabra, que dista aproximadamente 40km a SW de Iraquara, e Lençóis, cerca de 70km a SE, são as principais cidades nas redondezas.

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Histórico

As feições cársticas locais somente foram reportadas, até os anos oitenta, em trabalhos de cunho regional - a exemplo de Tricard & Silva (1968) - , que não faziam descrição específica das cavernas da área. Já nos anos 80, Guerra (1986) estudou, preliminarmente, a origem de feições do relevo cárstico, como depressões fechadas dentro de um contexto geológico e hidrogeológico em toda a faixa carbonática entre Iraquara e Irecê.

Os levantamentos espeleológicos na região possuem uma história bastante recente dentro do quadro espeleológico brasileiro. Eles tiveram início em 1986, através das expedições franco-brasileiras lideradas pelo Grupo Espeleológico do Ceará - GEECE. O resultado dessa expedição foi nada mais do que a surpreendente descoberta da Caverna Lapa Doce, naquela época, a maior do Brasil. A partir de então, outras incursões organizadas por equipes francesas proporcionaram o levantamento de outros sistemas de cavernas quilométricas na região: a Lapa da Torrinha, a Gruta Azul e o Sistema Cão-Talhão. Um registro sintético dessas atividades foi apresentado no trabalho de Panchout & Panchout (1995).

Em 1988, o Grupo Bambuí de Pesquisas Espeleológicas - GBPE iniciou suas atividades de exploração e mapeamento na região de Iraquara (Rubbioli, 1995). As sucessivas investidas dos espeleólogos do GBPE proporcionaram o estabelecimento de um panorama mais abrangente da distribuição de cavernas ao longo da exposição de rochas carbonáticas, contribuindo também para o reconhecimento e a topografia de outras grutas com grande dimensão, tais como a Lapa do Diva, a Diva de Maura e o Sistema de Cavernas Ioiô-Impossível.

Entre janeiro de 1995 e fevereiro de 1999, funcionou em Seabra o escritório regional do Centro de Recursos Ambientais da Bahia (CRA), sob coordenação do Sr. Aloísio Cardoso, personagem bastante conhecido no meio espeleológico brasileiro. Esse período foi extremamente rico para o cadastro e mapeamento de cavidades na região, devido ao constante trabalho de prospecção e também ao suporte de infra-estrutura básica efetuado por esse órgão junto aos grupos que até então trabalharam na região, como o GBPE, o Guano Speleo IGC/UFMG e a União Paulista de Espeleologia - UPE.

Assim, com o progresso dos trabalhos de localização e mapeamento topográfico das cavidades locais, feitos pelos grupos de espeleologia, tornaram-se viáveis os estudos científicos específicos em subsuperfície. Coube a Ferrari (1990) o pioneirismo no desenvolvimento de estudos sistemáticos, de caráter acadêmico, a partir de levantamentos desenvolvidos nas cavernas da região de Iraquara. Esse autor apresenta um inventário de feições cársticas de superfícies, além de uma caracterização inicial dos sedimentos clásticos associados ao Sistema Lapa Doce. As observações e conclusões geradas a partir desse estudo foram significativamente ampliadas, recentemente, através dos trabalhos de Cruz Jr. (1998) e Laureano (1998), os quais, em conjunto, reportam a história de abertura e preenchimento dos dois maiores sistemas de cavernas da região: Lapa Doce e Torrinha. Auler (1999) utilizou as grutas de Iraquara para embasar modelos regionais de espeleogênese, trabalhando também com geocronologia, através de datações por paleomagnetismo e pela série de decaimento do Urânio em calcitas secundárias depositadas em espeleotemas.

Descrição do Sítio

Contexto geológico

A área do sítio em questão corresponde à porção sul de uma das principais exposições de rochas carbonáticas do estado da Bahia, denominada geologicamente como Bacia Sedimentar de Irecê (Souza et al. 1993). A seqüência de rochas carbonáticas dessa bacia pertence à Formação Salitre, Grupo Una, Supergrupo São Francisco (Inda & Barbosa, 1978), de idade neoproterozóica. Essa formação é composta predominantemente de unidades calcárias representadas por calcilutitos, calcarenitos oolíticos a pisolíticos e outras com predomínio de calcários dolomíticos e dolomitos, descritos como doloarenito e dololutitos. Os diferentes tipos de rochas caraterizam fácies associadas à sedimentação carbonática em zonas de mar raso até talude de plataforma continental, de acordo com Souza et al. (1993) e Dominguez (1996).

Essas litologias estão inseridas em um conjunto de megadobras, cujo estilo é representado pela sucessão de suaves anticlinais e sinclinais de dimensões variáveis, entre quilômetros a dezenas de quilômetros, sendo seus eixos orientados preferencialmente na direção NNW-SSE (Dandefer-Filho, 1990). Na região de Iraquara, a seqüência carbonática está posicionada em um sinforme que chega a atingir 20km de largura, apresentando valores de mergulhos geralmente baixos, entre 5 a 10° , podendo, em alguns pontos, alcançar mergulhos de até 40° .

Margeando as seqüências carbonáticas, afloram litologias dominantemente siliciclásticas, pertencentes à Formação Bebedouro, ainda inseridas no Grupo Una, e litologias mesoproterozóicas dos grupos Chapada Diamantina e Paraguaçu (Figura 2).

Contexto geomorfológico

A região de Iraquara está situada no domínio de um planalto cárstico que possui intervalos de altitudes entre 600 e 800m e relevo suavemente ondulado. O planalto cárstico encontra-se circundado por serras com intervalo de altitudes entre 800 a 1.200m, em cuja porção superior ressaltam as feições morfológicas em arenitos da Formação Tombador, Grupo Chapada Diamantina, as quais correspondem ao Domínio do Planalto dos Gerais (ver Pedreira e Rocha, 1999, Sítio 31, neste mesmo livro). Os Morros do Pai Inácio e do Camelo, localizados no limites sudeste da área, são exemplos muito conhecidos dessas feições na região.

Desníveis de até 500m em relação às serras de arenito favorecem o direcionamento de toda a rede de drenagem para o planalto cárstico, mais precisamente no sentido do vale do Rio Santo Antônio. O referido rio é um importante afluente do Rio Paraguaçu e constitui a principal drenagem da área, correspondendo, assim, ao nível de base hidrológico local, para onde confluem as drenagens provenientes das serras areníticas e os fluxos de água subterrânea. Em suas margens, ao longo do planalto cárstico, existe um considerável número de surgências ou nascentes cársticas, tais como a Surgência da Pratinha, nas proximidades da confluência com o Riacho do Gado (Figura 2).

A drenagem no planalto cárstico caracteriza-se pela presença de vales bem encaixados compostos por vertentes geralmente escarpadas com profundidades, em alguns casos, superiores a 40m. Alguns desses vales, como os riachos Água de Rega e das Almas, situados a NW da área, não chegam a se comunicar com o Rio Santo Antônio, formando assim expressivos vales cegos. Estes, por sua vez, evidenciam diretamente a captura de drenagens superficiais por cavernas, em subsuperfície.

As depressões fechadas sobressaem-se no relevo local, não somente por serem a feição cárstica mais comum, mas também pelos diferentes tipos morfológicos presentes. Essas feições consistem em dolinas simples com alguns metros de diâmetro e até mesmo em grandes dolinas compostas e uvalas, cujo eixo maior tem comprimento superior a 1km. Cruz Jr. (1998) quantificou parâmetros planimétricos de distribuição, forma, orientação e área superficial de um total de 837 depressões, medidas numa área de superfície carbonática de 492km2, ou seja, 1,7 depressões por km2, que abrange desde a cidade de Iraquara, a norte, até as proximidades da BR-242.

As cavernas são, na maioria dos casos, acessadas via dolinas de colapso ou abatimento. O processo de abatimento de condutos foi muito importante na segmentação e destruição parcial a total de parte das cavernas da área. O melhor exemplo disso é o alinhamento das dolinas de colapso sobre as cavernas Lapa Doce e Lapa da Torrinha, onde as depressões aparentam marcar a continuidade do Vale do Riacho Água de Rega, em superfície. A existência da correlação estatística entre a orientação do eixo das depressões e os segmentos de condutos, nos trechos referentes às cavernas Lapa Doce e Lapa da Torrinha, ao centro da área, e às grutas do Ioiô e Impossível, a sudeste, evidencia a direta associação entre a distribuição de cavernas e dolinas de abatimentos na área (Cruz Jr., 1998).

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O carste em subsuperfície

As cavernas podem ser encontradas em todo o planalto cárstico, no entanto verifica-se uma distribuição preferencial na parte centro-sul da área, particularmente no trecho entre os sumidouros dos riachos Água de Rega e das Almas e a margem esquerda do Rio Santo Antônio (Figura 3). Outras importantes ocorrências estão situadas nas proximidades das surgências da Pratinha, do Rio Preto e na porção sudeste da área.

Os sistemas de cavernas Lapa Doce e Lapa da Torrinha, localizados nas proximidades do Sumidouro do Riacho Água de Rega, com desenvolvimento horizontal de 17 e de 8,3km, respectivamente (Panchout & Panchout, 1995), são os mais extensos conhecidos.

O Sistema Lapa Doce, até então considerado um dos dez maiores sistemas de cavernas do país, foi separado espeleometricamente por Rubbioli (1995) nas cavernas Lapa Doce (6,5km) e Lapa Doce II (9,8km), com o argumento de que uma dolina de colapso interrompe a continuidade entre os dois ramos do sistema. Outras grandes cavernas, de acordo com o levantamento de Rubiolli (1995), são a Lapa do Diva (3,9km) e o Sistema Cão-Talhão (3,0km), mais a sul; as grutas do Ioiô (4,0km) e Impossível (2,3km), a sudeste, na margem direita do Rio Santo Antônio; e a Gruta Azul (1,5km), nas adjacências da Surgência da Pratinha (Figura 3).

Existe uma grande diversidade de padrões morfológicos de cavernas em planta ao longo da área. Acredita-se que os grandes sistemas de cavernas são formados principalmente a partir de recargas de fluxo via drenagens superficiais alogênicas provenientes das serras de arenito, com destaque para os riachos Água de Rega e das Almas. Os sistemas Lapa Doce (foto1) e Lapa da Torrinha (foto 2) são caracterizados pela presença de galerias maiores que, em muito locais, possuem largura e altura, respectivamente, superiores a 50 e 15m, de onde se formaram ramos de condutos que definem um padrão geral distributário (Ferrari, 1990; Cruz Jr., 1998). Em outros sistemas de grande dimensão, predominam padrões de condutos principais mais estreitos, porém com poucas ramificações, tais como nas Grutas do Diva e Impossível. As cavernas com padrão de grandes salões de abatimento são as mais freqüentemente encontradas na área, a exemplo das grutas de Zé Libano, Jaburu, Santa Marta, Conceição, entre muitas outras. Elas geralmente possuem grandes e belos pórticos de entrada, que dão acesso a volumosos salões, onde os condutos adjacentes são geralmente interrompidos por blocos abatidos ou pelo preenchimento sedimentar. Já as cavernas com padrão reticulado, ou de condutos em ângulo, ocorrem principalmente junto às margens do Rio Santo Antônio, nas proximidades de surgências cársticas. É bem provável que, com o avanço dos trabalhos de mapeamento topográfico de cavidades, no futuro próximo, muitas ocorrências desse tipo incluam-se entre as maiores cavernas da área.

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A maior parte das grutas de Iraquara são formadas por passagens secas ou drenadas apenas por cursos de água intermitentes. No entanto, existem várias ocorrências de cavernas, ou trechos destas, com a presença de lagos e rios perenes, de incontestável beleza cênica, em que o processo de formação e ampliação de passagens de condutos encontra-se em franca atividade. Os sistema de cavernas Gruta Azul-Pratinha, as grutas do Ioiô, Impossível e do Diva são tidos como os principais exemplos locais. Algumas dessas cavidades, como o Sistema Gruta Azul-Pratinha, necessitam ser mapeadas por espeleo-mergulhadores.

As galerias emersas são, na maioria, portadoras de um rico acervo de espeleotemas, propiciando uma ornamentação com uma tal variedade de formas que impossível seria aqui descrevê-las na totalidade. Predominam os precipitados de calcita, os quais ocorrem como estalactites, estalagmites, colunas, escorrimentos, travertinos, entre outros. A aragonita também é regularmente encontrada, compondo também as mais variadas formas. A caverna que mais se destaca, até o momento, no contexto de variedade de formas e composição de seus depósitos químicos secundários é, sem dúvida, a Gruta da Torrinha. No interior de suas galerias, é possível contemplar, além das formas mais comuns, espeleotemas menos populares e não menos singulares e belos, como vulcões, flores de aragonita e o maior depósito de agulhas de gipsita de que se tem conhecimento em grutas brasileiras, contendo exemplares que superam os 50cm de comprimento.

A evolução morfológica das cavernas do sítio está restrita, em grande parte, às observações referentes ao estudo morfológico e geoespeleológico realizado nos sistemas Lapa Doce e Lapa da Torrinha, a partir dos trabalhos de Ferrari (1990), Cruz Jr. (1998) e Laureano (1998). Além do padrão geral de condutos distributários preferencialmente com direção NW-SE, anteriormente referido, ocorrem nesses sistemas trechos com morfologia em alça, reticulada e entrelaçada, descritos com base na geometria de condutos e na relação entre as suas paleorrotas de fluxo (Cruz Jr., op. cit.). A junção dos ramos distributários aos condutos principais está situada junto ao piso ou em diferentes alturas em relação a ele, o que define assim a existência de diferentes níveis de condutos nesses sistemas. Poucos metros abaixo do piso do conduto principal, existem malhas labirínticas de condutos que consistem em um dos únicos trechos desses sistemas que estão, periódica a permanentemente, submersos.

O modelo espeleogenético proposto por Cruz Jr. (1998) para os sistemas Lapa Doce e Lapa da Torrinha sugere uma história evolutiva multifásica que envolveu fases de abertura, ampliação, assoreamento e, por fim, desobstrução/erosão de condutos. A fase de abertura incluiu uma iniciação freática de condutos; a fase de ampliação consistiu num entalhamento normal dos condutos que acompanhou mudanças do nível de base do Rio Santo Antônio; a fase de assoreamento foi caracterizada por expressivos depósitos de sedimentos clásticos que preencheram, quase que totalmente, os condutos desses sistemas, ocasionando modificações de sua morfologia por processos paragenéticos, regidos pela subida no nível eustático da água (tetos planos nivelados pela água, canais de teto, pendants); e, por fim, a fase desobstrução/erosão dos condutos envolveu a erosão parcial dos sedimentos, formando, em alguns casos, proeminentes canais caracterizados por taludes em sedimentos com mais de 20m de altura, configurando, dessa forma, o espaço físico das passagens atualmente exploradas. É importante acrescentar que em muitos trechos dos sistemas as galerias foram totalmente modificadas por processos de incasão ou colapso de suas paredes e tetos, formando imponentes pilhas de grandes blocos e lajes, com destaque para o Salão Branco na Lapa da Torrinha, onde, numa galeria com largura superior a 100m, existem pilhas de blocos com mais de 20m de altura.

A análise estratigráfica efetuada por Laureano (1998) nesse expressivo registro sedimentar do Quaternário continental brasileiro aponta para uma diversidade de ambientes deposicionais atuantes no preenchimento desses condutos. As associações faciológicas indicam para atuação, da base para o topo, de típicos rios subterrâneos, compostos por canais e planícies de inundação, seguidos pela sedimentação em condições de enchentes bruscas relativas a cursos efêmeros e, finalmente, por uma deposição gravitacional referente à injeção de sedimentos argilosos em condutos alagados (Figura 4).

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Medidas de Preservação

A Área de Preservação Ambiental (APA) Marimbus-Iraquara constitui uma unidade de conservação permanente instituída através do Decreto Estadual nº 2.216, de 14 de junho de 1993. Perfaz uma área de 1254km2, abrangendo parte das terras dos municípios de Iraquara, Lençóis, Andaraí e Seabra, e engloba cenários como o morro do Pai Inácio, o Pântano do Marimbus e o grande Planalto Cárstico da Região de Iraquara.

Através do zoneamento ecológico-econômico apresentado pela BAHIATURSA (1998), concebeu-se, como instrumento de disciplina do uso e ocupação do solo, em sintonia com o desenvolvimento do turismo, a proteção do parque espeleológico e a eliminação das práticas agrícolas realizadas sobre as grutas. Para tal foi previsto o estabelecimento da Zona de Proteção de Cavernas, formando um polígono de 13 x 15km, no centro do planalto calcário de Iraquara. Essa zona prevê uma área de influência das grutas (projeção com mais de 250m), onde o uso indicado é exclusivamente permitido à pesquisa científica e ao turismo ecológico, através de trilhas de pedestres e visitação mediante autorização, a depender da sustentabilidade desse uso.

A gestão da APA Marimbus/Iraquara é um dos desafios atribuídos à BAHIATURSA, órgão oficial do turismo no estado da Bahia, fundamentada na co-gestão participativa da União, do Estado, dos municípios envolvidos e da sociedade civil, através de um conselho de acompanhamento de caráter consultivo.

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