Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil - 015 CARSTE DE LAGOA SANTA Data: 15/02/2000 Mylène
Berbert-Born CPRM-Geological
Survey of Brazil
© Berbert-Born,M. 2000. Carste de Lagoa Santa. In: Schobbenhaus,C.; Campos,D.A.; Queiroz,E.T.; Winge,M.; Berbert-Born,M. (Edit.) Sítios Geológicos e Paleontológicos do Brasil. Publicado na Internet
em 15/02/20000 no endereço http://www.unb.br/ig/sigep/sitio015/sitio015.htm
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RESUMO
Pouco ao norte de Belo Horizonte, centro-sul de Minas Gerais, está
uma das regiões brasileiras mais importantes em termos de paisagem cárstica carbonática
e da história das ciências naturais do país: o
Carste de Lagoa Santa. Esta região apresenta um denso conjunto de feições
tipicamente dissolutivas em associação a uma hidrografia com componentes fluviais
(subaéreos) e cársticos (subterrâneos), desenvolvidos em calcarenitos puros
(CaCO3>94%) da formação Sete Lagoas (Grupo Bambuí) cobertos, em sua maior parte, por
formações pedológicas significativas. O relevo superficial (exocarste) evoluiu a partir
da configuração primordial de redes hídricas subterrâneas (endocarste) e de uma
dinâminca intensa na interface rocha-solo (epicarste), cuja integração favoreceu o
aparecimento de múltiplos pontos de captura de águas superficiais segundo bacias
primárias e secundárias (dolinas e uvalas). Em paralelo, tem-se a conformação de um
relevo rochoso encoberto fortemente irregular como atestam torres residuais e verrugas
aparentes em áreas dissecadas. Outras feições comuns são os grandes paredões lineares
-geralmente resultantes da evolução das dolinas- canyons,
vales cegos e dolinas de abatimento instalados em segmentos fluviocársticos, bem como
grandes planícies rebaixadas alagadas sazonalmente (poljés).
A trama de condutos subterrâneos, estruturalmente controlados, está hoje em grande parte
diretamente conectada à superfície, constituindo centenas de cavernas. A este ambiente
estão associados sítios paleontológicos de grande valor, com componentes da megafauna
pleistocênica extinta e vestígios muito importantes da ocupação humana pré-histórica
no Brasil, entre os quais, ossos de cerca de 12 mil anos descritos por Lund como o
Homem de Lagoa Santa. A implantação de uma Área de Proteção Ambiental
(APA) tem procurado valorizar e conciliar o patrimônio natural e cientifico às
condições de intenso desenvolvimento urbano e industrial próprias à região.
INTRODUÇÃO
A região de
Lagoa Santa, localizada nas adjacências da metrópole Belo Horizonte, centro-sul do
estado de Minas Gerais, é um importante exemplar brasileiro de ambiente cárstico
desenvolvido em rochas carbonáticas.
Em termos de
suas características físicas, apresenta uma geomorfologia cárstica típica e
diversificada, com algumas feições especialmente marcantes: i) grande quantidade de
dolinas em variedade de tamanhos, formas e padrões genéticos, muitas vezes limitadas por
paredões calcários lineares; ii) grandes maciços rochosos aflorantes ou parcialmente
encobertos; iii) muitos lagos com diferentes comportamentos hídricos, associados às
dolinas ou em amplas planícies rebaixadas, e iv) uma complexa trama de condutos
subterrâneos, comumente conectados com o relevo superficial e, assim, acessíveis ao
homem. Todo esse conjunto de grandes feições dissolutivas expostas, agregado às
pequenas formas que esculpem os afloramentos rochosos (lapiás) e à vegetação que lhe
é peculiar, marca uma paisagem que tem um mérito cênico, e portanto, turístico.
Além do
aspecto paisagístico, as propriedades físicas do carste de Lagoa Santa têm uma
importância acadêmica por representarem belos exemplos dos processos dinâmicos
integrados de dissolução, transporte, deposição clástica, precipitação química e
erosão, no âmbito da superfície do terreno (exocarste), no subterrâneo (endocarste) e
na interface rocha-solo (epicarste).
O carste de
Lagoa Santa também tem um significado especial para a história da ciência e da cultura
do povo brasileiro. A região é considerada o berço da paleontologia, arqueologia e
espeleologia. O pioneirismo das pesquisas é justificado, em princípio, por tratar-se da
região do país onde atualmente se registra o maior número de cavernas por área. Essa
aglomeração de grutas e abrigos guarda grande quantidade de fósseis pleistocênicos,
entre eles a chamada megafauna extinta, e os vestígios mais importantes da
ocupação humana pré-histórica no Brasil, que incluem painéis rupestres, utensílios e
ossadas, cujos registros mais antigos são datados de aproximadamente 12.000 B.P.
(Prous et al., 1998).
Outra característica que é singular à Lagoa Santa, dentre as demais áreas cársticas do país, é a expressiva ocupação antrópica que implica em risco à sua integridade. A região sofre expansão demográfica e representa um pólo industrial e minerário de extrema importância econômica. Essa situação conflitante, com crescente comprometimento da água, vegetação e relevo, foi um fator decisivo para o estabelecimento de uma Unidade de Conservação, com atributo de Área de Proteção Ambiental (APA Carste de Lagoa Santa). A partir do seu zoneamento ecológico-econômico (Souza, 1998), espera-se que o desenvolvimento prossiga em coexistência harmônica ao patrimônio natural.
LOCALIZAÇÃO E FISIOGRAFIA
Definição e situação
O carste de
Lagoa Santa é uma região a cerca de 30 km ao norte de Belo Horizonte identificada pela
ocorrência de um denso conjunto de feições geomorfológicas tipicamente dissolutivas e
por uma hidrografia que pode ser caracterizada como mista de componentes fluviais
(subaéreos) e cársticos (subterrâneos), como ilustra a figura 1.
Grande parte
da área cárstica situa-se no interflúvio do rio das Velhas (a leste) e ribeirão da
Mata (a oeste-sudoeste), estando limitada ao sul-sudoeste pela ocorrência das rochas
granito-gnáissicas do embasamento cristalino. Ao norte o limite não está bem
estabelecido, mas o perímetro cárstico pode ser referenciado por aquele que define os
limites da APA (figura 1), extrapolando-os um pouco rumo ao norte, perfazendo mais de 360
km2. Estão envolvidos os municípios de Vespasiano, Pedro Leopoldo, Confins,
Lagoa Santa, Matozinhos, Funilândia e Prudente de Morais.
Em direção
à cidade de Sete Lagoas, a noroeste, estendem-se ainda faixas significativas daquele tipo
geomorfológico, desenvolvido sobre variantes faciológicos dos mesmos litótipos, áreas
estas, entretanto, não consideradas como integrantes do carste de Lagoa Santa
propriamente dito.
Figura 1: Localização e
hidrografia do Carste de Lagoa Santa.
Hidrografia e relevo
As
principais sub-bacias hidrográficas são definidas pelos córregos Samambaia,
Palmeiras-Mocambo, Jaguara e riacho do Gordura (figura 1), para onde são drenadas as
águas pluvias capturadas, em grande parte, pelos inúmeros dolinamentos distribuídos ao
longo da área. Os limites dessas bacias ainda não estão perfeitamente reconhecidos,
porque muitas rotas de fluxo subterrâneo ainda são desconhecidas. Todas elas têm
descarga final no rio das Velhas, nível de base regional.
Dois
compartimentos fisiográficos maiores descrevem os principais domínios morfogenéticos do
carste propriamente dito, os quais foram bem delineados por Auler (1994) para a
porção-centro sul da área: Planaltos Cársticos e Depressão de Mocambeiro, com cotas
variando entre 900m, junto à Serra dos Ferradores, e 650m, onde se encontram os níveis
de base locais, como a planície de Mocambeiro e a região de Sumidouro
Kohler
(1989) reconhece restos da Superfície Sul-Americana em topos planálticos residuais,
marcados por morros alongados e convexos nas cotas superiores a 800m. As partes dissecadas
do planalto cárstico são caracterizadas ou por um relevo fortemente ondulado, em
cobertura pedológica, composto por diversas bacias mutamente articuladas segundo
polígonos irregulares (dolinas e uvalas) grosseiramente alinhados, os quais dirigem o
escoamento superficial (autogênico) para múltiplos pontos de infiltração (Piló,
1998), ou ainda segundo áreas onde afloram grandes maciços rochosos lapiezados. Há
regiões entalhadas por canyons e vales cegos
que caracterizam segmentos fluviocársticos. Diversos condutos subterrâneos são
interceptados pela superfície do relevo, tendo sido levantadas centenas de cavernas com
diferentes morfologias e dimensões. As áreas mais deprimidas constituem-se em planícies
relativamente amplas, de fundo plano e vertentes abruptas recuadas (poljés), ocupadas por
lagoas temporárias ou canais de drenagem subaérea.
Clima e vegetação
A
temperatura média do ar é da ordem de 23oC, sendo 11,2oC a média
das mínimas temperaturas num período de 30 anos (mês de julho), e 29,6oC a
média das máximas (outubro a março). A umidade relativa varia de 60 a 77% nos meses
mais secos e úmidos, respectivamente, chegando a 96% nos meses mais úmidos. A
pluviometria média está em torno de 1380mm. O período seco estende-se por 5 meses, de
maio a setembro, com menos de 7% das chuvas anuais, caracterizando um regime
pluviométrico tipicamente tropical, havendo uma grande concentração de chuvas no verão
e seca no inverno (Patrus, 1996).
A região
possui formações vegetacionais de cerrado e floresta estacional semidecidual (IBGE,
1993). O cerrado restringe-se a manchas remanescentes, em regeneração ou em transição
(mata-cerrado). Nas dolinas e arredores dos afloramentos prevalece a Floresta Estacional
Semidecidual. Sobre os afloramentos calcários desenvolve-se Floresta Estacional Decidual
(mata seca) (Piló, 1998).
Contexto geológico
As rochas
carbonáticas onde estão desenvolvidas as feições cársticas que definem o carste de
Lagoa Santa são litótipos neoproterozóicos do Grupo Bambuí, componentes da Formação
Sete Lagoas, aflorantes no extremo sudeste da extensa bacia sedimentar pré-cambriana do
Bambuí que integra o Cráton do São Francisco (figura 2a).
A
geomorfologia instalada é reflexo de uma estratigrafia marcada pela sucessão de duas
unidades carbonáticas composicionalmente diferenciadas (Formação Sete Lagoas),
superpostas por rochas siliciclásticas muito finas (Formação Serra de Santa Helena),
estando tal seqüência assentada em discordância sobre rochas do Complexo
Gnáissico-Migmatítico Arqueano (figura 2b). As coberturas detrito-lateríticas
elúvio-coluvionares do Cenozóico que ocorrem como superfícies residuais aos estágios
de aplainamento também desempenham papel na estruturação do relevo cárstico aqui
descrito.
Figura 2: Geologia. A)
localização do Carste de Lagoa Santa no esboço geológico do Cráton do São
Francisco(simplificado de Almeida e Hasui, 1984, e Alkmim et al., 1993); B) mapa
litoestratigráfico da APA Carste de Lagoa Santa (Viana et al., 1998).
A
estratigrafia considerada é aquela definida por Schöll (1976) e ampliada por Tuller et
al. (1992) com o reconhecimento de sete fácies deposicionais compondo as duas unidades
carbonáticas da Formação Sete Lagoas: membros Pedro Leopoldo e Lagoa Santa. Além do
reconhecimento das variações litofaciológicas, aquele último trabalho reconheceu
variações tectofaciológicas das unidades, ambas de relevância na estruturação
geomorfológica sob diversas escalas.
A
seqüência carbonática segundo os referidos autores é composta, à base (Membro Pedro
Leopoldo), por calcários chamados impuros ou silicosos onde predominam
calcissiltitos e calcilutitos finamente laminados com freqüentes intercalações
argilosas terrígenas delgadas. A participação clástica é mais acentuada especialmente
no contato com embasamento cristalino. O teor de carbonato de cálcio está sempre abaixo
de 90% e pode chegar a 60% (Campos, 1994; Piló, 1998). Esta unidade pode atingir 80
metros de espessura (Campos, 1994; Tuller et al., 1992).
Acima dos
carbonatos basais ocorre um pacote de calcarenitos muito homogêneos (Membro Lagoa Santa),
com teor de CaCO3 superior a 94%, que pode alcançar 200 metros de espessura, segundo
Tuller et al. (op.cit.). Esta é a unidade mais sujeita à carstificação. O contato
entre os dois membros é muito irregular, podendo ter caráter transicional ou
interdigitado, com intercalações de até 20 metros de espessura entre ambos (Campos,
1994), ou ser brusco. Os calcissiltitos Pedro Leopoldo podem recorrer sobre os
calcarenitos Lagoa Santa, de maneira restrita.
A passagem
da seqüência carbonática para a pelítica da Formação Serra de Santa Helena também
pode ser transicional, com a participação de camadas margosas intermediárias a ambas
(Campos, 1994), ou em discordância (Tuller et al., 1992). Há locais onde os pelitos
assentam-se diretamente sobre os calcissiltitos basais.
As
espessuras variáveis das unidades, suas descontinuidades, variações faciológicas
laterais e verticais e diferenças nas suas relações mútuas de contato são atribuídas
ao caráter fortemente irregular do embasamento cristalino que caracteriza a bacia
deposicional. Nota-se que o paleorelevo da bacia também teve uma influência importante
sobre a deformação imposta pelos movimentos tectônicos que determinaram o transporte de
baixo ângulo da sequência supracrustal sobre o complexo cristalino (tectônica
epidérmica), de leste para oeste.
A
seqüência descrita encontra-se variavelmente deformada, em grau de metamorfismo fraco,
com predominância de estruturas subhorizontais. Assim, as laminações e bandamentos
correspondem a foliações tectônicas coincidentes com o plano de acamamento original,
este último já transposto, especialmente na metade oriental da área onde a deformação
é mais intensa. A freqüente venulação calcítica e silicosa observada segundo a
foliação de transposição reflete a grande mobilização associada a uma deformação
de caráter dúctil. O sentido do movimento está bem expresso por uma lineação mineral
de estiramento muito marcante, de direção E-W e caimento suave para E.
A deformação aparenta maior intensidade no contato entre cada
uma das unidades e na base da seqüência, configurando zonas de cisalhamento inter e
intraestratais, talvez como resultado da maior proporção de intercalações argilosas
funcionando como agente lubrificador e favorecedor do transporte de massa.
Estruturas disruptivas estão especialmente representadas por
famílias de fraturas de alto ângulo (subverticais) cuja freqüência e direções são
variáveis sobre cada um dos litótipos, e conforme o domínio estrutural ou
deformacional. Nota-se que nos calcários heterogêneos basais estão melhor expressas
estruturas associadas a um caráter de tectônica mais dúctil, como as laminações
plano-paralelas a onduladas. Nos calcários grosseiros e homogêneos sobrejacentes está
expresso um comportamento mais rígido, sendo o fraturamento particularmente importante e
decisivo na configuração do relevo atual. Entre os principais conjuntos, sobressaem os
de direção E-W, N30-40E e N10-20W, podendo haver variações, conforme dito, segundo
diferentes domínio estruturais. Alguns falhamentos maiores de rejeito vertical ou
oblíquo foram identificados, sendo responsáveis pela individualização de blocos
estruturais e pelo alinhamento de escarpas e grupos de dolinamentos (Campos, 1994).
As unidades apresentam-se em geral cobertas por sedimentos coluvionares de espessura variável, que podem alcançar mais de 50 metros e até 80 metros, conforme identificado por furos de sondagens (Campos, op.cit). As maiores espessuras encontram-se sobre os calcários silicosos da base da sequência, muitas vezes formando amplas planícies, as quais podem ser inundadas sazonalmente.
HISTÓRICO
Há muitos
registros arqueológicos pré-históricos na região indicando uma ocupação humana que
chega a 12.000 anos (Prous et al., 1998). São sítios com ossadas, artefatos indígenas
em pedra, ossos e cerâmica, vestígios de fogueiras, gravuras, picoteamentos e pinturas
rupestres, a maioria, resguardados nas cavernas, abrigos e junto aos paredões rochosos.
Populações
sucederam-se ocupando de forma mais densa e permanente as cavernas e abrigos (Prous et
al., op.cit.), cultivando o solo e fazendo uso das águas de lagoas em dolinamentos. Com a
chegada das primeiras bandeiras, que teve Fernão Dias Paes como precursor por volta de
1675, houve rápida desestruturação das sociedades indígenas, especialmente em
decorrência das notícias de ouro aluvionar na região (Piló, 1998).
O homem
volta a relacionar-se com as cavernas da região, com interesses econômicos sobre a
extração de salitre para o fabrico da pólvora (Gomes e Piló, 1992). Nessas investidas
foram achados ocasionalmente ossos animais e humanos que atraíram a atenção dos
pesquisadores naturalistas da época. A partir de 1840 tem-se registros das primeiras
explorações e de estudos sistemáticos nas cavernas, realizados pelo dinamarquês Peter
Lund. Seus trabalhos projetaram a região de Lagoa Santa no mundo científico,
especialmente por ter sido suspeita a contemporaneidade entre as populações
pré-históricas conhecidas como Homem de Lagoa Santa e a fauna extinta,
idéia pioneira para a época (Prous et al., 1998). Lagoa Santa torna-se o berço da
arqueologia e da paleontologia brasileira.
Após Lund,
muitos outros naturalistas e viajantes registraram os atributos da paisagem em seus
relatos e publicações científicas. Destacaram-se as pesquisas arqueológicas e
paleontológicas do Museu Nacional do Rio de Janeiro nas décadas de 1920 e 1930, os
estudos da Academia de Ciências de Minas Gerais no decorrer de mais de 20 anos, e as
campanhas internacionais Americano-Brasileira (década de 50) e Missão Franco-Brasileira
(década de 70). Foram nomes de destaque Lanari, Padberg-Drenkpol, Aníbal Matos, Arnaldo
Cathoud, Josaphat Pena, H.V.Walter, Hurt e Blasi, Souza Cunha, Paula Couto,
Laming-Emperaire. A partir da missão francesa, as pesquisas passam a ser desenvolvidas
pelo Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais, com a atuação
de A. Prous e C. Cartelle. No campo dos estudos geomorfológicos, atuaram com destaque
Tricart, Barbosa, Journaux, Coutard e Kohler.
Os trabalhos
desenvolvidos foram acompanhados por descrições do ambiente cavernícola, de suas
morfologias, sedimentos clásticos e químicos, e das relações com a paisagem externa. A
região é também considerada o berço da espeleologia brasileira, tendo sido também
Lund o seu precursor. Em 1937 registra-se em Ouro Preto a fundação da primeira sociedade
brasileira de espeleologia, a SEE-Sociedade Excursionista e Espelológica, vinculada à
Escola de Minas. A partir de sua criação tem início os primeiros trabalhos de
exploração, mapeamento e descrição especificamente voltados à compreensão das
feições subterrâneas.
A década de
80 é brindada por diversos trabalhos acadêmicos versando sobre geologia, geomorfologia,
hidrogeologia, limnologia e paleoecologia, entre monografias, dissertações e teses.
Ocorre também a atuação importante de alguns grupos de espeleologia. Na década
seguinte foram desenvolvidos projetos ambientais multidisciplinares por instituições
governamentais (CPRM-Serviço Geológico do Brasil, CETEC-Centro de Estudos Tecnológicos
de Minas Gerais, IBAMA) em parceria com as administrações municipais, já calcados em
ensaios anteriores, como os levantamentos que nortearam a construção do
aeroporto internacional Tancredo Neves, em Confins.
A pressão
do desenvolvimento econômico considerado vital para a região, sobre uma área de
reconhecida fragilidade física e de grande valor científico e cultural, culminou no
estabelecimento de uma Área de Proteção Ambiental (Decreto Federal no 98.881
de 26/01/90), já tendo sido definidas através do seu zoneamento ecológico-econômico
(Souza, 1998), as premissas para uma coexistência sustentável.
DESCRIÇÃO
A região de
Lagoa Santa apresenta terrenos de geomorfologia cárstica, definidos por um relevo
acidentado do tipo côncavo-convexo com formas superficiais próprias que resultam da
dissolução de rochas carbonáticas e da estruturação de uma hidrografia com
importantes componentes subterrâneos.
Assim sendo,
constitui-se de feições que lhes são típicas tanto na superfície, consideradas o
exocarste, quanto no subterrâneo, onde se articula uma trama de condutos de
dimensões e morfologias variadas compondo o endocarste. Tais condutos são
muitas vezes acessíveis ao homem por sua interseção ao relevo superficial,
representando as cavernas, consideradas uma das feições mais representativas da região.
Existe ainda um terceiro domínio, representado pela interface rocha-solo, chamado
epicarste. Em todos os domínios, há componentes específicos sob diferentes
escalas que devem ser considerados para a caracterização do ambiente como um todo
Salienta-se
o forte vínculo mútuo das formas superficiais, subsuperficiais e subterrâneas, uma vez
que a dinâmica subterrânea tem um papel determinante sobre a configuração do relevo
superficial, ao mesmo tempo que as formas superficiais instaladas são fundamentais na
circulação de águas e na movimentação de sedimentos. A dinâmica dos processos
dissolutivos no domínio epicárstico tem reflexo particularmente significativo na
configuração da paisagem de Lagoa Santa, segundo Piló (1998).
Exocarste
Várias
unidades e subcompartimentos fisiográficos foram individualizados (CETEC, 1987, Kohler,
1989; Auler, 1994; CPRM, 1994; Piló, 1998): unidade dos Desfiladeiros e Abismos com Altos
Paredões, Cinturão de Uvalas, Planalto Cárstico, Planalto Cárstico Poligonal, Topos
Residuais Planálticos, Planalto de Dolinas, Planalto de Matozinhos-Vespasiano,
Superfície Cárstica Encoberta, Superfície Filítica, Superfície Rebaixada de Lagoa
Santa, Planícies Fluviais, Planícies Cársticas, Uvala de Mocambeiro, Megauvalas com
Lagoas, Maciços e Planícies do Riacho do Gordura, Poljé do Sumidouro.
As unidades que melhor caracterizam a compartimentação regional, reunindo feições dominantes em relação genética com o sistema hídrico, são aquelas definidas por Auler (1994). Dentre elas, as que descrevem feições cársticas são:
Planalto Cárstico
Define as áreas de topografia fortemente irregular entre as cotas
850 e 700 metros, onde ocorrem grandes concentrações das principais formas cársticas:
maciços aflorantes, paredões lineares, torres e verrugas lapiezados, destacando-se a
grande freqüência de dolinas, especialmente as de dissolução e subsidência
(aluviais). Neste compartimento estão incluídos a unidade dos Desfiladeiros e Abismos
com Altos Paredões, o Cinturão de Ouvalas e o Planalto de Dolinas individualizados em
maior detalhe por Kohler (1989) (figura 3A).
Campos de dolinas caracterizam o carste desenvolvido em áreas
cobertas por solos de espessura variável. Muitas vezes conformam bacias maiores
articuladas segundo uma rede celular de polígonos irregulares com um escoamento
superficial radial centrípeto, com múltiplos pontos de infiltração situados ao fundo
das dolinas e uvalas. Um importante exemplar dessa configuração é a Depressão
Poligonal Macacos-Baú (Piló, 1998). Segundo Piló (op.cit.), a maioria das dolinas
naquela região tem sua bacia limitada por paredão calcário, sendo, portanto,
assimétricas em meio-círculo, com fundo chato, côncavo ou afunilado. Dolinas circulares
ou ovais com assimetria de vertentes, sem aforamentos rochosos, também são tipo
freqüente.
Conjuntos expressivos que reúnem alto índice de dolinamento e
maciços rochosos expostos ou semi-encobertos estão na região da Lapinha, Lapa Vermelha,
região de Cerca Grande e Jaguara, Poções e proximidades, região da mineração
Ciminas, região da fazenda Cauaia e Gordura (figura 3B). Alguns sistemas fluviais estão
presentes em combinação aos sistemas hidrológicos subterrâneos, os quais são
responsáveis pelo modelamento de canyons e
vales cegos, como a região de Poções, onde também são comuns dolinas de abatimento.
Algumas importantes planícies aluviais em vales de vertentes
recuadas são também consideradas como componentes do Planalto Cárstico, como trechos do
curso dos córregos Palmeiras-Mocambo, Samambaia, Jaguara e Gordura. São representadas
pelos compartimendos das Megauvalas com lagoas, Maciços e planícies do
riacho do Gordura e Poljé do Sumidouro de Kohler (1989), apresentados
na figura 3A. A planície do córrego Samambaia merece ser destacada nesse domínio, e
até mesmo individualizada, por representar uma importante bacia de descarga de águas
capturadas nos planaltos circundantes, conduzidas à grande depressão da lagoa do
Sumidouro (poljé do Sumidouro), já próximo ao nível de base regional representado pelo
rio das Velhas.
Lapiás, ou karren, são
sulcos e reentrâncias de escala milimétrica a métrica também consideradas um
particular cárstico que pode diferenciar-se de região para região. No carste de Lagoa
Santa, um dos tipos mais notáveis dessas formas de dissolução são os desenvolvidos ao
longo da foliação ou bandamento horizontal (lapiás de juntas), conformando
canaletas lenticulares ou ovalares (figura 3C), geralmente de poucos centímetros a poucos
decímetros, repetidas com grande freqüência, nalguns casos, concentrando-se ao longo de
determinados horizontes. Caneluras verticais também são comuns (figura 3D).
A geomorfologia no Planalto Cárstico está fortemente vinculada
à ocorrência dos calcários puros homogêneos do Membro Lagoa Santa. Uma característica
distintiva entre o relevo desenvolvido sobre calcarenitos calcíticos e os calcissiltitos
silicosos, ainda que capeados por mantos pedológicos, refere-se à forma das vertentes
das colinas que, segundo Campos (1994), é criteriosamente mais suave sobre os carbonatos
silicosos comparativamente àquelas sobre os calcíticos.
Outro aspecto notável é o alinhamento de paredões lineares e
dolinamentos, coincidentes com as direções dos principais conjuntos de fraturas
subverticais presentes nos calcarenitos (Beato et al., 1992; Berbert-Born et al., 1998,
Piló, 1998), indicando o importante controle destas estruturas na configuração da
hidrografia e da morfologia exocárstica. Há alguns casos reconhecidos como vinculados a
zonas de falha de rejeito em alto alto ângulo, como por exemplo, o escarpamento da Lapa
Vermelha e um cinturão de uvalas contíguo que se estende no sentido NW (Campos, 1994).
Figura 3: Características do
exocarste de Lagoa Santa. A) compartimentação geomorfológica da área da
APA (Kohler et al., 1998); B) região do maciço da Jaguara (Experiência da Jaguara); C)
lapiás de juntas (schichtenkarren) e D) caneluras verticais (rinnenkarren).
Superfícies cársticas encobertas
São áreas
com espesso manto de solo sobrejacente aos calcários, que limita muito a expressão das
formas cársticas. Tais coberturas ocorrem especialmente nos segmentos ocidental e
meridional da área. As Superfícies Filíticas
recobrem boas extensões da área, onde os carbonatos estão recobertos por rochas
metapelíticas. Neste domínio há ocorrências sugestivas de feições cársticas, que
podem derivar de carstificação ocorrendo em profundidade nos carbonatos.
Depressão de Mocambeiro
Corresponde
a uma extensa planície rebaixada com cotas altimétricas em torno de 700 metros, limitada
por colinas de vertentes abruptas e grandes afloramentos rochosos. Está alojada sobre um
manto argiloso que capeia os carbonatos silicosos da base da seqüência carbonática,
segundo furos de sondagem (Campos, 1994). É também descrita como um poljé.
Representa a
região mais dissecada do carste, com alagamentos periódicos segundo dolinas ou uvalas
amplas e suaves. Funciona como nível de base local para onde é dirigida a descarga de
boa parte das águas coletadas e drenadas nas áreas de Planalto Cárstico. Em alguns
pontos há maciços rochosos residuais com pequenas cavernas e abrigos associados,
classificados como humes (Uvala de Mocambeiro e Região de Humes da figura
3A).
Epicarste
No carste de Lagoa Santa é possível observar um relevo rochoso
irregular instituindo-se sob a cobertura pedológica que, de uma maneira geral, delineia a
geometria geral das altas e médias vertentes do relevo superficial. Segundo Piló (1998),
o relevo epicárstico é marcado por duas feições expressivas: i) formas residuais
ruiniformes maiores tipo torres e ii) lapiás de carste coberto, podendo haver afloramento
parcial das feições residuais no perfil de vertentes, conformando as chamadas
verrugas.
Aquele autor acredita que a dissolução seja bastante acelerada
nessa interface da rocha com o solo, havendo uma importante atuação das fraturas
alargadas na recarga hídrica difusa que incide no estabelecimento de um padrão
labiríntico das formas (condutos) endocársticas e na dinâmica do seu preenchimento por
sedimentos.
Endocarste
As cavernas - e seus depósitos químicos e clásticos - são os representantes mais importantes do endocarste de Lagoa Santa, sem desconsiderar as "fissuras" ou pequenos condutos que também compõem a trama endocárstica, fundamentais na dinâmica d'água e como hábitat de uma fauna especial.
Dentro
dos limites da área da APA estão registradas 387 cavernas (figura 4), chegando ao
número de 500 se tomado o entorno, incluído o município de Sete Lagoas. Considerando a
existência de grandes áreas ainda pouco prospectadas, este número serve para dar uma
idéia do potencial a novas descobertas.
Nenhuma
outra localidade apresenta tal densidade de cavernamento, o que a torna um verdadeiro
"parque espeleológico". A diversidade de situações, de morfologias e de
combinações propicia um apanhado completo e complexo da natureza cárstica em pequenos
espaços de área.
Figura 4: Localização das
cavernas e situação dos principais conjuntos de feições cársticas do Carste de Lagoa
Santa.
Características gerais das cavernas
O
contexto espeleológico regional é descrito pela predominância de cavernas de pequeno
porte, a maioria com menos de 500 metros de extensão. Cavidades que ultrapassam 800
metros de desenvolvimento já se destacam no conjunto, a termos de dimensão: grutas do
Baú, do Boi, Irmãos Piriá, Rei do Mato (turística), Buraco do Medo, Cerca Grande,
Lemniskos, Morro Redondo e Cascata II. As maiores ocorrências registradas são a Gruta da
Escada, com 1822 metros e Lapa Vermelha I, com 1870 metros. Morro Redondo apresenta o
maior desnível total, de 75 metros, havendo um vão livre de 52 metros que interliga dois
níveis morfologicamente distintos da caverna. As grutas Tobogã, Salitre, Morena e Lapa
Nova de Maquiné, situadas mais ao norte, são também importantes regionalmente, sendo
aquela última particularmente relevante por aspectos históricos e turísticos.
Na
diversidade dos pequenos ambientes cavernícolas existentes ocorre uma grande variedade de
tipos de espeleotemas. As cavernas com maior profusão de espeleotemas são aquelas já
abertas ao turismo: Maquiné, Rei do Mato e Lapinha. Rei do Mato guarda exemplares
magníficos de colunas e estalagmites (figuras 5A e B) escorrimentos de grande beleza e
conjuntos expressivos de estalactites. Escorrimentos e cortinas são os grandes atrativos
de Lapinha (figura 5C).
Nas
demais cavidades, são muito comuns conjuntos de estalactites, estalagmites, colunas,
escorrimentos e travertinos de pequeno e médio porte (centimétricas a decimétricas).
Coralóides (couve-flor, leite-de-lua) recobrem grandes extensões de superfícies da
rocha encaixante. São também relativamente comuns cristais dente-de-cão e helictites.
Represas de travertino são em geral rasas, em razoáveis extensões ao longo de
declividades de baixo ângulo, sendo uma variedade comum os microtravertinos
"texturizando" superfícies de outros espeleotemas (figura 5D). Bacias
travertínicas profundas são consideradas pouco comuns, encontradas nas grutas do Baú,
Escada e Poções. Também são incomuns estalactites de maior porte, como ocorrentes na
Lapa Vermelha I e em Paredão da Fenda III, superando 4 metros de dimensão. Há
ocorrências isoladas de pérolas, vulcões, cortinas de aragonita, "folhas" e
"agulhas" de gipsita (figura 5E), flores, triângulos e círculos de calcita.
Figura 5: Aspectos do endocarste de Lagoa Santa- sedimentos químicos (espeleotemas). A) colunas tipo velas no salão principal da gruta turística Rei do Mato; B) estalagmites e colunas em Rei do Mato; C) detalhe de cortina na gruta da Lapinha; D) microrrepresa de travertino na superfície de cortinas; E) agulha de gipsita na gruta do Intoxicado.
Em sua relação com o relevo externo, as cavernas
afloram em grande diversidade de situações, associadas a várias tipologias de dolinas,
escarpas e maciços rochosos. Há algumas aglomerações que, em associação às formas
superficiais, vegetação e corpos d'água, compõem certos conjuntos paisagísticos
especiais, alguns dos quais acrescidos de relevância histórica e cultural. São os casos
do Conjunto Cárstico de Cerca Grande, Conjunto Arqueológico e Paisagístico dos
Poções, Maciços da Cauaia e do Gordura, Conjunto Porteira de Chave, Vargem de Pedra,
Maciço da Lapinha, Planície de Mocambeiro com seus maciços residuais, Lagoa do
Sumidouro, Região da Lapa Vermelha, Conjunto Experiência da Jaguara, Maciço
Macacos-Baú e Dolinas ao Sul da Pedreira Ciminas (vide figura 4). Sobre os dois primeiros
conjuntos há tombamentos específicos.
Condicionamento geológico
Quanto a
forma, arranjo, distribuição e freqüência dos condutos de cavernas, uma primeira
distinção é determinada pela diferenciação faciológica (litológica e tectônica) da
seqüência carbonática onde se instalou o relevo cárstico.
A grande
maioria das cavernas desenvolve-se nos calcarenitos homogêneos do Membro Lagoa Santa,
onde está instalado o típico relevo cárstico superficial e os principais sistemas
hidrológicos subterrâneos. Estatisticamente, há predileção de condutos de diferentes
hierarquias por certas direções coincidentes a famílias de fraturas definidas. As
galerias subterrâneas são maiores e muito mais freqüentes na direção N75-85E e
aproximadamente N-S (figura 6A) (Berbert-Born et al., 1998). É esperado que as fraturas
E-W sejam realmente estruturas mais aptas ao alargamento inicial, uma vez que elas devem
representar o principal conjunto aberto da região em decorrência de processos
tectônicos extensionais (Beato et al. 1992). O desenvolvimento preferencial de condutos
na direção N-S é concordante com padrões locais de alinhamento de dolinas que, segundo
Piló (1998), podem refletir a influência da foliação subhorizontal que tem leve
mergulho para leste.
A
geometria verticalizada da maioria das seções transversais dos condutos (figura 6B) é
um aspecto esperado pela influência das fraturas de atitudes subverticais. São muito
comuns os casos em que as galerias conformam um perfeito retículo labiríntico,
coincidente com a articulação dos conjuntos de fraturas, sendo exemplos típicos as
grutas Escada, Cerca Grande e Lapa Vermelha. Em outras situações, quando não
reticuladas, têm trechos retilíneos e mesmo sinuosidades claramente impostas por aquele
tipo de estrutura. Seções com tendência horizontal são, pois, restritas a situações
em que a foliação ou laminação é localmente mais expressiva ou em níveis de
concentrados calcíticos (veios remobilizados).
Os
calcissiltitos impuros da seqüência basal (Membro Pedro Leopoldo), com freqüentes
intercalações pelíticas, são composicionalmente menos favoráveis à carstificação.
O cavernamento ocorre em situações especiais, ao longo dos contatos interformacionais
inferior e superior onde há intensificação da deformação. No contato inferior, está
vinculado à menor permeabilidade do embasamento cristalino, que força um maior tempo de
residência da água e sua circulação no calcário assentado acima, sendo a gruta dos
Irmãos Piriá o exemplo-tipo. O entalhe tende a ser lateral com alargamento progressivo,
caracterizado pelo desplacamento de finos blocos tabulares induzido pela forte foliação
ondulada e pelas próprias intercalações argilosas.
Onde a
deformação é mais forte e generalizada, a lineação de estiramento observada nos
planos da laminação subhorizontal segundo a direção aproximada E-W exerce um controle
significativo sobre a abertura de pequenos condutos, reentrâncias e orifícios de perfil
circular a ovalar. Há exemplos característicos na Gruta da Lapinha, como ilustra a
figura 6C (Berbert-Born et al. 1998).
Figura 6: Aspectos do endocarste
condicionados a estruturas geológicas. A) diagramas de roseta da freqüência e
comprimento acumulado de condutos subterrâneos desenvolvidos nos calcarenitos do Membro
Lagoa Santa (Berbert-Born et al., 1998); B) conduto de seção verticalizada na gruta do
Baú, conformado em pelo menos duas etapas distintas de entalhe; C) Orifícios
condicionados à existência de lineação de estiramento bem definida, na gruta da
Lapinha.
Condicionamento hidrológico
Não
obstante a caracterização genérica das cavernas em função da configuração
litoestratigráfica e estrutural maior, tem-se ainda assim uma grande diversidade
morfológica, resultante dos variantes hidrológicos locais.
O
Planalto Cárstico é uma região de grande dinâmica hídrica, de captura e
transmissão das águas pluviais rumo aos níveis de base locais. Em segmentos
fluviocársticos, há cavernas tipicamente configuradas pelo fluxo rápido e turbulento de
rios subterrâneos, apresentando caráter de sinuosidade com trechos retilíneos, com
galerias vinculadas a diferentes hierarquias tributárias que são normalmente drenagens
ativas por curto espaço de tempo. Portanto, há cavernas que configuram pequenos trechos
de uma rede de drenagem, com segmentos atualmente desconectados em função da
dissecação do relevo. As principais ocorrências integram a região de Poções.
Mas a
grande parte das cavernas nesse domínio fisiográfico está associada às dolinas,
particularmente àquelas delimitadas por escarpa calcária. Suas aberturas podem estar à
base dos paredões, atual fundo das dolinas, ou acima do atual fundo. Funcionam como
pontos atuais ou pretéritos de captura do escoamento das bacias, ou estão associadas a
alagamentos ativos ou inativos da bacia.
Há
vários exemplos de cavernas atualmente secas situadas acima do atual fundo das dolinas,
transparencendo entradas lateralmente dispostas à meia-altura das escarpas,
sendo as grutas da Escada e Cerca Grande exemplos típicos (figura 7A). Nesses casos, é
comum haver também o desenvolvimento de cavernas irregulares pouco extensas ao sopé do
paredão no fundo da dolina, funcionando como atual captura das águas e sedimentos
escoados pela bacia. Salienta-se a existência de exemplares que registram a evolução
progressiva de um tipo para o outro.
Algumas
destas cavernas ao fundo de dolinas correspondem a conexões mais tardias do
relevo com um sistema subterrâneo previamente conformado. Ou seja, são dolinas de
subsidência que evoluíram a partir de uma rede subterrânea instalada. Em geral, esse
tipo de situação ocorre segundo conjuntos de dolinas em proximidade mútua,
caracterizando múltiplos pontos de captura superficial, de algum modo conectados no
subterrâneo.
Lagos em dolinas, segundo Auler (1994,1995), são determinantes da
elaboração de planimetrias labirínticas (reticulares), com tendência anastomosada,
dependendo da estruturação local do calcário. Porém, as cavernas associadas a esse
tipo de condição mostram uma morfologia complexa que resulta de variações
hidrológicas policíclicas, marcada por feições superimpostas.
Há bons registros de diferentes fases evolutivas superpostas nas
cavernas do Baú, Escada e Lapa Vermelha (figura 7B), entre elas, condições de
flutuação do nível d'água, diferentes fases de preenchimento sedimentar intercaladas
ao prevalecimento de precipitação química, indícios de processos paragenéticos,
reentalhe vadoso por drenagens de escoamento das dolinas. Também podem ser citadas as
cavernas da Lavoura, Morro Redondo e Poções, quanto à incidência de combinações de
diferentes agentes genéticos (Berbert-Born et al. 1998).
Figura 7:Feições de destaque do
Carste de Lagoa Santa. A) janelas lateralmente dispostas à meia-altura do
maciço rochoso de Cerca Grande, cada qual conduzindo a galerias subterrâneas mutuamente
paralelas e panorâmica do maciço ; B) entrada da caverna Lapa Vermelha ao verão, com
pessoas como escala ao centro e à base da boca, e detalhe da entrada ao inverno (foto de
Ézio Luís Rubbioli).
Outros
tipos de cavernas são resultado exclusivo da ação quimicamente mais agressiva, porém
ainda dispersa, de águas intersticiais que percolam as descontinuidades da rocha em lento
fluxo descendente. São em geral de porte reduzido, sinuosas a retilíneas, sem grandes
intercomunicações mas em grande densidade de ocorrência. Estão geralmente nos altos
maciços como os de Poções e Lapinha, muito embora tais processos também componham a
evolução das demais cavidades. Aliás, a ação dessas águas pode assumir magnitudes
surpreendentes ao remodelar completamente o perfil das paredes das galerais, além de ser
o principal agente da elaboração dos precipitados químicos secundários (espeleotemas).
Na unidade denominada Depressão de Mocambeiro, as cavernas mais
significativas ocorrem geralmente à base de rochosos residuais à denudação que são
circundados pelo lençol d'água aflorante. Em face do baixo gradiente hidráulico, são
articuladas galerias labirínticas ainda com seções de perfil horizontalizado devido à
expressão dos processos solubilizadores ao longo da superfície d'água. São cavernas em
plena conformação atual, sendo bons exemplos as grutas à base do maciço da Jaguara.
Nos maciços e humes também existem cavernas situadas numa certa altura acima do atual
nível dágua aflorante, materializando níveis dágua pretéritos.
Sedimentos
Em muitas cavernas estão registradas diferentes fases de
deposição sedimentar. Um aspecto marcante é a associação de sequências clásticas e
níveis de precipitação química. Os sedimentos constituem-se, mais comumente, por
brechas com componentes argilosos, areias, seixos, fragmentos de rocha e espeleotemas em
proporções muito variáveis que oferecem indícios sobre as energias deposicionais.
Piló (1998) identificou três depósitos sedimentares distintos
sob capas estalagmíticas na gruta do Baú, com restos da fauna extinta. Sobre cada um,
incidiram processos erosivos que determinaram uma grande remobilização e lixiviação
dos materiais, sob regime vadoso. Datações U/Th sobre as capas estalagmíticas indicaram
ciclos deposicionais atuantes entre mais de 135 e 60 mil anos. Para as deposições
químicas, foi interpretado condições de climas mais úmidos.
Considerações evolutivas
O modelo evolutivo da Depressão Macacos-Baú proposto por Piló
(1998) ilustra as principais etapas da dinâmica de desenvolvimento da geomorfolgia
regional.
Comparando as taxas locais estimadas de velocidade de
aprofundamento de dolinas (relação altimétrica entre capas estalagmíticas datadas em
U/Th e fundo atual das dolinas) e o desnível total de 210 metros entre o planalto
residual da superfície Sul-Americana e ponto mais baixo da região estudada, foi
possível estimar em 1,9M.a. a idade máxima
para o início do entalhamento daquela superfície, sem deixar de considerar que as
dolinas têm uma dinâmica de evolução acelarada no contexto geral da evolução da
paisagem.
O modelo defende a configuração de uma drenagem subterrânea
antes da elaboração do relevo cárstico, evoluindo para um relevo de depressões
fechadas (início da formação de dolinas) com o aumento gradativo das conexões dos
sistemas endocársticos (Quaternário Inferior). Várias cavernas hoje aflorantes já
estariam relacionadas a esses sistemas primários sob regime freático.
A conformação de sumidouros permitiu o fluxo de grande volume de
detritos como corridas de lamas e fluxos aquosos, marcando um período de morfogênese
muito ativa, provavelmente relacionada a episódios de chuvas intensas sob cobertura
vegetacional esparsa. Expressivos volumes de condutos foram generalizadamente colmatados,
o que pode ter induzido, em ciclo ou ciclos posteriores, desenvolvimento paragenético
setorizado de condutos. À essa fase, segue-se um longo período de maior
estabilidade e redução do fluxo clástico o qual permitiu uma sedimentação química
sobre os depósitos clásticos, que pode ter relação com uma mudança climática
expressiva, com o aprofundamento do nível de base local ou com o impedimento da
circulação hídrica devido à própria colmatação dos sedimentos. Posteriormente,
ocorre erosão dos depósitos atribuída a um outro período de chuvas intensas. Toda essa
fase de preenchimento clástico, seguida de precipitação química e de posterior
processo erosivo está datada como anterior a 135 mil anos, a partir de uma estalactite
desenvolvida sob uma das capas estalagmíticas que recobre um importante depósito
clástico.
Outros períodos deposicionais clásticos e químicos
energeticamente menos intensos seguiram-se, associados a eventos de entalhe vadoso dos
condutos e de sedimentos previamente deposicionados (pelo menos três episódios de
sedimentação química foram identificados). Em sedimentos sob capas estalagmíticas
datadas de aproximadamente 70 mil anos estão presentes vestígios da megafauna extinta.
O incremento das conexões endocársticas, induzido até mesmo
pela evolução epicárstica, deve ter facilitado o transporte dos materiais da cobertura,
justificando a conformação das dolinas secundárias superimpostas ao perfil
de vertentes maiores, no Pleistoceno Terminal, segundo um novo período de maior umidade,
constatado por pólens e datações de sedimentos de lagoas.
Processos holocênicos estariam expressos pela ampliação de dolinamentos, abatimentos da cobertura, introdução de mais material no endocarste, processos de abatimento nos paredões calcários e geração de novas capas estalagmíticas depositadas, até mesmo, sobre vestígios humanos pré-históricos.
PALEONTOLOGIA E ARQUEOLOGIA
Desde Lund, um grande número de informações foram geradas nos campos da paleontologia e arqueologia, tendo prevalecido o interesse maior sobre o Homem de Lagoa Santa e as populações que o sucederam. Muito dos achados paleontológicos foram decorrentes de pesquisas de cunho arqueológico (Cartelle et al., 1998).
Há ainda um potencial enorme para pesquisas
paleontológicas sistemáticas, considerando o grande número de cavernas menores quase
desconhecidas e as suas características deposicionais. Entre o material paleontológico
já revelado, destacam-se os componentes da fauna Pleistocênica extinta, entre eles,
preguiça gigante, tigre-dente-de-sabre (figuras 8A e B), lhama, cavalo, tatu gigante,
gliptodonte, mastodonte. Atualmente, os estudos paleontológicos têm ficado restritos a
pesquisadores da Universidade Católica de Minas Gerais e ao Museu de História Natural da
Universidade Federal de Minas Gerais.
A arqueologia de Lagoa Santa tem sua importância assegurada não
só pelo seu papel na história dessa ciência no Brasil, mas também por suas
revelações antropo-biológicas, pelos vestígios das mudanças ambientais no Holoceno,
pelos indícios da implantação do homem na paisagem e sua sobrevivência, bem como pelos
vestígios da tecnologia pré-histórica (indústrias lítica, do osso, de conchas,
madeiras e cerâmica), segundo Prous et al. (1998). Os estudos possibilitaram definir os
quadros gerais das ocupações humanas na região e suas limitações. Além disso, têm
permitido estudar o mundo simbólico dos homens na pré-história, especificamente os
rituais funerários e a arte rupestre (figura 9).
A existência de numerosos sítios com grafismos
parietais elevam Lagoa Santa ao status de
uma das mais importantes províncias rupestres do país, tendo particular
importância as informações sobre a cronologia das pinturas e o reconhecimento de
várias unidades estilísticas. Pela primeira vez no Brasil, pinturas rupestres tiveram
uma idade semi-absoluta (idade mínima) determinada, quando foram descobertos
grafismos enterrados abaixo de níveis de ocupação datados por radiocarbono. Os
primeiros grafismos tiveram idades reveladas de pelo menos 6.000 anos.
Quanto aos vestígios mais antigos que se tem registros, tratam-se
de ossos datados por carvões com idades entre 10.200 e 11.680 anos, idade
também confirmada em uma datação recente de ácidos húmicos penetrados pós-morte em
osso de um indivíduo (Prous et al., 1998).
Cerca de uma centena de sítios pré-históricos, entre abrigos
sob rocha e sítios a céu aberto estão cadastros pelo Setor de Arqueologia da
Universidade Federal de Minas Gerais. Além do número de sítios, surpreende a quantidade
de material existente, podendo-se mencionar a descoberta de cerca de 80 indivíduos em
apenas uma das pesquisas ocorridas (Prous et al., op.cit).
Salienta-se que algumas porções da área, particularmente o
norte e nordeste são quase que totalmente inexploradas pelos arqueólogos, sendo
promissoras ao aparecimento de novos sítios-chave para a ciência.
O material arqueológico e paleontológico está reunido em coleções científicas e didáticas de instituições reconhecidas, e também em coleções particulares. Muito material foi levado ao exterior por Lund. Citam-se as coleções do Museu de Zoologia de Copenhagen (Dinamarca), Museu do Homem de Paris, Museu Nacional (Rio de Janeiro), Museu de História Natural da UFMG (Belo Horizonte), Museu de Mineralogia da UFOP, Centro de Arqueologia Annette Laming-Emperaire (Lagoa Santa), Centro de Estudos Tecnológicos de Minas Gerais (CETEC/MG). Como coleção particular, cita-se o Museu Arqueológico de Lapinha.
Figura 8: Dois fósseis de
Lagoa Santa coletados por Lund (in Cartelle et al., 1998). A) esqueleto completo de
preguiça gigante Eremotherium laurillardi (6 metros de comprimento, em linha, do crânio
à extremidade da cauda; B) esqueleto completo de tigre-dente-de-sabre Smilodon populator
(aproximadamente 2 metros de comprimento)
Figura 9: Pinturas rupestres em Lapa do Ballet: antropomorfos.
ESTADO DE CONSERVAÇÃO
A
maioria das cavernas do Carste de Lagoa Santa sofreu ou vem sofrendo interferências
diretas ou indiretas de atividades antrópicas. As mais comuns e notáveis são as de
ordem estética: quebra de espeleotemas, pichações e acúmulo de lixo. Entretanto, há
outras lesões consideradas graves ao ambiente cavernícola, embora menos evidentes ao
observador comum. São as que resultam em transformações lentas ou que incidem sobre
componentes menos perceptíveis, mas não menos importantes, como a fauna, os depósitos
sedimentares que a sustentam, a atividade da água. São exemplos a cobertura ou
impregnação de superfícies por fuligem de fogueiras ou outras substâncias corrosivas,
crescimento de algas induzido por iluminação artificial, recobrimento de áreas por
sedimentos mobilizados, inundação, seca, alteração na composição fisicoquímica e
biológica da água e modificações de cursos naturais d'água que alteram o ciclo de
atividade dos espeleotemas, a evolução natural das formas e o desenvolvimento da fauna.
A
atividade mineradora é responsável por muitos desses impactos, uma vez que remove
vegetação e solo, induzindo o aporte de detritos e modificando condições de fluxo
d'água. O trânsito de maquinário, as detonações e as emissões de chaminés geram
poeiras diversas, e os próprios abalos das detonações são agentes potencialmente
impactantes. Nesse caso, os danos têm caráter mais pontual, porém drástico. Há casos
isolados de convivência harmoniosa entre esse tipo de atividade e os sítios
espeleológicos, casos de prejuízos irrecuperáveis e casos de risco iminente.
Por ser
mais extensiva, a atividade agrícola talvez atue como o maior agente impactante, ao
facilitar que solo revolvido e nutrientes sejam carreados para o ambiente cavernícola.
Além disso, o desmatamento expõe as entradas, o que modifica as condições
atmosféricas internas e suscita um maior trânsito de pessoas. Sem a proteção natural
da vegetação, as freqüentes pinturas rupestres e outros vestígios arqueológicos
tornam-se mais sujeitos à ação do intemperismo.
É ainda
comum a quebra generalizada em paredes e em concreções ao piso, resultado de pequenas
lavras das próprias concreções calcíticas, normalmente nas proximidades das entradas.
São também o "resíduo" de escavações na busca de objetos arqueológicos e
ossadas pré-históricas. Houve ainda época de exploração do salitre, matéria-prima da
pólvora. A significância histórica e cultural dos sítios compreende investidas
científicas bem e mal-sucedidas, algumas irreversivelmente nocivas pela falta de métodos
apropriados.
Em conclusão, o patrimônio espeleológico é altamente vulnerável à depreciação por estar em área populosa e industrial, e já se encontra moderadamente impactado, com alguns casos críticos. A intensa depredação decorrente da própria visitação aponta a necessidade de um projeto de educação ambiental direcionado à população local. Acredita-se que a forma mais viável e eficiente de conservação seja a fiscalização pelos próprios moradores, uma vez conscientizados do valor do patrimônio natural onde residem. É também salutar a manutenção da vegetação nativa nas proximidades das entradas, ou seja, junto aos maciços, paredões e dolinas, o que significa a conservação da própria paisagem externa (Berbert-Born et al. 1998).
POTENCIAL TURÍSTICO
O porte
reduzido das cavernas é um fator já por si restritivo à visitação turística, porque
o ambiente natural não é capaz de comportar um grande número de pessoas sem que haja
fortes interferências, sendo freqüentes situações de desconforto e risco. Por outro
lado, a densa aglomeração em que ocorrem as grutas é um aspecto muito interessante, com
apelo turístico.
O
aproveitamento turístico "convencional" como nas grutas Maquiné, Rei do Mato e
Lapinha, para as quais o visitante dirige-se no intuito de admirar espeleotemas e amplos
salões, pode ser considerado esgotado. Alternativas viáveis passam a ser aquelas que
componham "roteiros espeleológicos" de enfoque educativo, a fim de ilustrar o
funcionamento da dinâmica do carste, o meio biótico e a ocupação humana.
Tal
esquema de visitação não requer grandes adaptações ou suportes ao que o próprio
ambiente oferece, requerendo, talvez, pequenas melhorias no acesso. A imposição natural
é a da visitação em pequenos grupos de pessoas acompanhados de guias treinados e
instrumentados em número compatível, o que significa necessidade de investimentos
mínimos. Os roteiros, por sua vez, devem ter aprovação técnica após rigorosa
avaliação dos pontos, sendo necessário contemplar as susceptibilidades do que será
visitado, a fauna e os fatores de risco ao visitantes. Essa avaliação deverá indicar o
número ideal de pessoas e a periodicidade da visitação, os procedimentos necessários e
as restrições (Berbert-Born et al., 1998).
Em
síntese, qualquer iniciativa nesse sentido requer um plano de manejo.
COLABORADORES
Leitura crítica, sugestões e apoio do Dr. Luís Beethoven Piló foram cruciais à finalização deste trabalho, bem como o material bibliográfico cedido pelo Dr. Heinz Charles Kohler. Aos dois pesquisadores, expresso profundo reconhecimento e gratidão. E a Carlos Oití Berbert, como sempre, personalidade fundamental.
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