De: Carlos fernando de moura delphim [mailto:carlos.delphim@iphan.gov.br]
Enviada em: sexta-feira, 15 de outubro de 2010 16:19
Para: 'Manfredo Winge'
Assunto: RES: Sítio Cavernas da região de Guarani de Goiás e São Domingos, GO - CANCELAR ??

Sem me intrometer na questão científica que escapa aos técnicos do Iphan, devo contudo informar que para o Iphan, a Caverna de Terra em Ronca é de excepcional valor cultural. Colo abaixo alguns dados sobre sua importância como patrimônio cultural, que acredito, serão úteis para divulgar a função de nosso Instituto:
um abraço,
Carlos Fernando
Representante do IPHAN 

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

METODOLOGIA

BENS DE NATUREZA MATERIAL QUE CONSTITUEM O PATRIMÔNIO CULTURAL DE TERRA RONCA

I - Sítios de valor histórico

Conjunto Urbano de São Domingos

Conjunto Urbano de São João Evangelista

Caverna de São Bernardo

Sítios Étnicos

II - Sítios de Valor Paisagístico

Hidrografia

Significado Universal do Rio

Significado Universal das Cachoeiras

Geologia, Geomorfologia e Relevo

Significado Universal das Montanhas

Espeleologia

Significado Universal das Cavernas

A Visitação de Cavernas

Caverna de Terra Ronca

Gruta Angélica

Gruta de São Mateus

Vegetação

Fauna

Sítios de valor arqueológico

Sítios de valor paleontológico

Sítios de valor ecológico e científico

Paisagem Cultural

II - Bens de Natureza Imaterial

Modos de fazer

Celebrações

Recomendações

Recomendações para o Conjunto Urbano de São Domingos

Recomendações para o Conjunto Urbano de São João Evangelista

Recomendações para as Cavernas

Recomendações para Atividades de Lazer, Recreação e Turismo

Recomendações para a Paleontologia

Recomendações para a Geomorfologia

Recomendações para a Paisagem Cultural

Recomendações Finais


 

“O Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN é o órgão federal de preservação da memória, integridade, autenticidade e dos sutis significados do patrimônio cultural, recorrendo ao tombamento como forma de reconhecimento de suas dimensões, materiais e imateriais, mais evidentes e imediatas. Se alguns valores são adotados como justificativa para o tombamento, não significa que sejam os únicos e que, ao longo do tempo, não venham a se revelar outros novos e até então, desconhecidos. Com freqüência, dimensões inexpressivas de um bem cultural passam a assumir papéis de maior preponderância do que as reconhecidas pelo tombamento. O tempo irá encarregar-se de revelar aspectos, muitos desconhecidos ou não registrados, à época em que se informava o processo de tombamento. Um bem cultural pode ser avaliado segundo critérios objetivos ou subjetivos: pelo seu valor artístico; pela antigüidade; por estar associado a um fato ou personagem histórica; pelo valor de mercado; pelo valor da matéria prima com a qual foi fabricado, até mesmo por seu peso; pelo valor religioso, ideológico ou cultural; pelo significado que assume dentro de contextos mais restritos ou mais amplos. Nem todo valor tem necessariamente de ser reconhecido como de dimensão nacional. Um bem pode adquirir significação universal, nacional, estadual, municipal, comunitária e até mesmo grupal ou individual e todos eles, mesmo quando não reconhecidos como de preponderante interesse coletivo, são importantes e igualmente dignos de medidas para preservação.

 

Um sítio que reúne, de forma conjunta e integrada, elementos naturais e culturais, pode ser comparado a um tecido altamente diversificado, uma urdidura formada pelos valores fixos e permanentes, cuja trama vai se configurando em decorrência de relações dinâmicas que são as atividades nele desenvolvidas e os usos que lhe são conferidos. Cada fio desta teia assume diferente importância e, ao entrecruzar com outro, vai-se  reforçando o tecido, cada valor acentuando outro. Esses valores constituem o legado do meio físico, biológico e humano, Advindos do passado, são preservados no presente para maior enriquecimento do futuro. Quanto mais valores existirem e quanto mais inter-relações se estabelecerem entre si, tanto maior relevância apresenta o sítio e tanto mais formas de proteção legal e medidas efetivas serão exigidas para sua preservação. Quanto mais fios se entrecruzam, mais forte se torna a malha tecida. A capacidade de conferir significados plausíveis de serem transmitidos a pessoas de outras culturas e de outras épocas, a memória e o conhecimento humano são os elementos que irão estruturar e suster esse tecido.”


 

 

O presente documento, que reúne resultados da vistoria efetuada em áreas da região de São Domingos e do Parque da Terra Ronca, procurou atender à Senhora Procuradora da República, que solicitou que o trabalho fosse conduzido pelo Inciso V do Artigo 216 da Constituição.

 

“Constituem o patrimônio cultural brasileiro, os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

...

V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

 

Partindo da premissa que o conceito de patrimônio é uno e indissociável e que valores materiais não devem ser destacados de valores imateriais e considerando que os valores imateriais de Terra Ronca, embora de sutil e não imediata percepção, em nada são inferiores a seus monumentais valores materiais, consideramos necessário ampliar o parecer incluindo também bens de valor imaterial que nos pareceram, na região de Terra Ronca, tão expressivos quanto os materiais e que constituem os Incisos I, II, III e IV do Capítulo da Cultura da Magna Carta.

 

I.                    as formas de expressão;

II.                  os modos de criar, fazer e viver

III.                as criações científicas, artísticas e tecnológicas;

IV.               as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

 

A avaliação dos valores culturais de Terra Ronca foram orientados por todos esses incisos e estruturados de forma a primeiramente atender à requisição do Ofício de Meio Ambiente e Patrimônio Cultural da Procuradoria da República em Goiás quanto ao patrimônio material e, em seguida, quanto ao patrimônio imaterial.

 

“O patrimônio natural conta com inúmeros critérios técnicos e um vasto aparato legal objetivando sua proteção. A área responsável por esta vertente do patrimônio cultural dentro da estrutura do IPHAN fundamenta seu trabalho de defesa e preservação da herança natural sob a responsabilidade deste Instituto em duas posturas. A primeira trata a questão dos sítios e paisagens naturais dentro de condições estritamente técnicas expressas em documentos básicos para a preservação do meio ambiente, da natureza e da cultura elaborados por instituições e organizações nacionais e internacionais como CONAMA, IPHAN, WWF, IUCN, PNUMA, ICOMOS, UNESCO, e outros dos quais o Brasil é quase sempre signatário (...). A segunda postura (...) incorpora, é claro, as restrições estabelecidas em quaisquer dispositivos legais vigentes que incidam sobre um sítio ou paisagem, visando a sua proteção, quando for considerada a possibilidade de uma intervenção nesse sítio ou paisagem. Competindo ao Poder Público - em todos seus níveis - a incumbência de proteger, é óbvio que os critérios protetores de um órgão público não podem se chocar com as restrições de outro órgão. Proteção significa, portanto, proteção integral e plena..”

                       

Infelizmente não tivemos acesso ao Plano de Manejo do Parque Estadual da Terra Ronca, o que poderia ter enriquecido substancialmente nosso trabalho não apenas com maiores dados sobre a região como sobre a forma como o órgão ambiental goiano pretende agir em relação à utilização dos recursos naturais.

 

Observações resultantes do que deveria ter sido um laudo de vistoria fundiram-se a ponderações próprias de um parecer. Considerando nossa ampla experiência em questões ambientais, consolidada em mais de dez anos representando do Ministério da Cultura no Conselho Nacional do Meio Ambiente, bem com o conhecimento conjunto de questões ambientais e culturais, optamos por não abrir mão de formular recomendações, desde que necessárias à preservação do meio ambiente, do patrimônio cultural e de condições de dignidade do ser humano. Essas recomendações foram registradas ao fim de cada item no qual se fizessem necessárias. 

 

Por se constitui no mais impressionante legado da natureza local, o patrimônio espeleológico foi separado do item anterior e tratado à parte neste item. 

 

Procuramos também chamar a atenção para o significado universal dos bens mais expressivos, sobretudo sob um ponto de vista simbólico. Epígrafes inseridas ao longo de todo o texto realçam o significado cultural de cada aspecto abordado.


 

BENS DE NATUREZA MATERIAL QUE CONSTITUEM O PATRIMÔNIO CULTURAL DE TERRA RONCA

 

 

I - Sítios de valor histórico

“A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetônica isolada,

bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular,

de uma evolução significativa, de um acontecimento histórico.

Estende-se não só às grandes criações,

mas também às obras modestas, que tenham adquirido , com o tempo,

uma significação cultural.  ”[1]

            Habitada há milênios por grupos pré-históricos e há três séculos pelo branco e pelo negro, a região de Terra Ronca apresenta os sítios históricos urbanos. “O sítio histórico urbano é parte integrante de um contexto amplo que comporta as paisagens natural e construída, assim como a vivência de seus habitantes num espaço de valores produzidos no passado e no presente, em processo dinâmico de transformação, devendo os novos espaços urbanos ser entendidos na sua dimensão de testemunhos ambientais em formação.”[2] Acham-se igualmente preservadas raras qualidades humanas e ambientais. “As pequenas aglomerações se constituem em reservas de modos de vida que dão testemunho de nossas culturas, conservam uma escala própria e personalizam as relações comunitárias, conferindo, assim, uma identidade a seus habitantes.”[3] Pode-se afirmar, sem dúvida tratar-se de sítios de significação não apenas histórica mas cultural. “A expressão significado cultural designará o valor estético, histórico, científico ou social de um bem para as gerações passadas ou futuras.”

Conjunto Urbano de São Domingos

“Eu sou estas casas

encostadas

cochichando umas com as outras.

Eu sou a ramada

dessas árvore (...) de que gostam

a gente cansada e os pássaros vadios.”[4]

 

“A aldeia ergue-se entre pequenas colinas a uma légua a oeste da Serra Geral. É muito pequenina, contendo apenas cerca de quarenta casas, muitas das quais, pertencentes aos fazendeiros, desabitadas, exceto ao tempo das festas. Corre perto dela um ribeiro limpo, muito rápido, mas não tem peixes, porque estes são impedidos de subi-lo por uma catarata existente a certa distância da aldeia. A povoação de São Domingos nasceu da corrida do ouro que levou, no século XVIII, verdadeiras hordas de garimpeiros à região, movidos pela busca de um novo Eldorado. Dedicando-se a atividades agropecuárias após a decadência da mineração nos fins do século XVIII, a cidade conserva-se ainda bastante íntegra e autêntica. Possui uma praça em ligeiro aclive, rodeada por um casario de época embora já se percebam ameaças de desfiguramento como é o caso do Hotel Araújo, edificação desproporcional e pintada com fortes cores e letreiros para atrair hóspedes. Todo o conjunto urbano ao redor da igreja é bastante expressivo, com edificações de harmoniosas proporções, segundo os despojados padrões de Goiás. Solta no meio de um terreno, os fundos da rua do Hotel, há uma curiosa edificação, de enormes proporções, a casa do padre, cheia de arcadas e que, embora não tenhamos visitado, apresenta valor arquitetônico. Do lado superior do hotel as casas são antigas e bem conservadas. Uma delas é especialmente importante e distingue-se pelo esmero com que foi concebida e edificada. Do outro lado do quadrilátero da praça a rua fica em plano superior ao da praça da qual é separada por um talude. Nessa rua há um sobrado antigo e de belas proporções, parecendo abandonado e, o que é lastimável, correndo o risco de desabamento. A rua transversal inferior tem duas grandes edificações antigas, de valor histórico e arquitetônico. A agradável praça é ajardinada de forma bastante equivocada com Ficus benjamina, árvore de porte e impactos indesejáveis a ambientes históricos, podada em topiaria com formas geométricas. Os efeitos do sistema radicular dessa espécie logo se farão sentir sobre as delicadas construções e seu avantajado porte irá afetar as condições de percepção e visibilidade e as proporções do harmonioso conjunto urbano. Uma bela e singela igreja, lembrando um oratório do tipo capelinha, ocupa a parte superior e central do aclive. O interior da igreja é harmonioso e singelo, com altares diferenciados, um deles decorado de forma ingênua e naïf. Seu orago é São Domingos de Gusmão, fundador da Ordem de São Domingos, nascido na Espanha em 1170, cuja imagem, que veste o hábito de sua ordem, teria viajado no lombo de um burro conduzido por uma escrava de Salvador até São Domingos, no século XVIII, doada por dois irmãos portugueses, Domingo e José Valente.

 

Em 1990 as Centrais Elétricas de Goiás – CELG, represaram as águas do rio São Domingos, criando um lago para atender à Usina Hidrelétrica de São Domingos que gera energia para 14 municípios. Além de marcar a moderna história do município, a intervenção criou uma nova paisagem que dotou a cidade de praias com restaurantes e decks para o lazer e recreio da população.

 

Ao redor da cidade, a mão do escravo legou à paisagem linhas de muros de pedra em junta seca que delimitam as propriedades e se constituem em importante testemunho do trabalho e da memória do homem negro. O valor histórico de São Domingos não é apenas estadual mas nacional.

 

Conjunto Urbano de São João Evangelista

“E criação e gente, em liga, tudo era casto”[5]

 

            Segundo informações orais, a povoação de São João Evangelista é mais antiga que a de São Domingos. Um grande largo, atravessado longitudinalmente pela via de acesso e circulação da cidade, separa duas alas de casario interrompidas por terrenos desocupados. É pena que as esquadrias de madeira das casas estejam sendo substituídas por elementos metálicos. São casas de baixa estatura, entre as quais, sem qualquer privilégio, mal se distingue a pequena igreja da cidade, construção moderna e inexpressiva, sob invocação de São João Evangelista, padroeiro da cidade. É raro encontrar invocações ao discípulo mais amado de Cristo, aquele que auscultou seu coração. Em todo o mundo cristão, as atenções concentram-se em São João Batista. O povoado não tem uma praça formalmente concebida. Os moradores reúnem-se sob enormes jatobás, árvores que lhes são extremamente caras. Conhecem e narram suas histórias, idades e qualidades botânicas e econômicas de cada uma. O ágora da cidade não passa de dois bancos feitos com longos e grossos pranchões de madeira colocados paralelamente sob um jatobá.  Aí se reúnem os jovens durante o dia. Do outro lado do largo, sob outro frondoso jatobá cuja copa foi modelada pela criteriosa poda dos galhos inferiores, conforme fez questão de nos informar um morador, acham-se algumas peças de madeira que lembram esculturas geometrizadas mas que funcionam como bancos, uma área mais utilizada por homens adultos. Foi nesse local que pudemos constatar como a gente da cidade é dócil, civilizada e comunicativa. São João Evangelista é um raro exemplo de sítio cujos valores imateriais sobrepujam os históricos e arquitetônicos. Os habitantes são simples, humildes, alegres e dignos, o vilarejo casto e perfeitamente integrado à natureza original. Convivem com

 

Caverna de São Bernardo

 

A Caverna de São Bernardo, outro local de presumível valor histórico, teria abrigado a população da região quando fugia da Coluna Prestes na segunda metade da década de 1920. Aí também se refugiaram grupos políticos, fugitivos do regime militar na década de 1960, existindo ainda os restos de um fogão que construíram.

 

Sítios Étnicos

 

            Em uma Fazenda chamada Quilombo, teria existido um quilombo contudo não mais existem negros no local, o que não exclui a possibilidade de serem encontrados sítios arqueológicos históricos registros da memória e da cultura negra. Não chegamos a saber se existem assentamentos ou vestígios de assentamentos atuais ou pretéritos de grupos indígenas na região além dos sítios arqueológicos detectados.

 

II - Sítios de Valor Paisagístico

“Paisagem é até onde a vista alcança.”

 

O complexo da região que inclui o Parque Terra Ronca é rico em formações físicas e biológicas de valor conjunto ou isolado, de excepcional valor dos pontos de vista estético e científico. É representativo e importante habitat para a conservação in situ da diversidade biológica. Possui espécies animais e vegetais ameaçadas, o que lhe confere excepcional valor do ponto de vista da ciência e da conservação. As formações geológicas e geomorfológicas das estruturas sedimentares e dos sedimentos na Bacia do Paranã são bem conservadas, exemplo destacado e representativo de diferentes períodos da história global incluindo o registro da evolução de processos geológicos significativos em curso, do desenvolvimento das formas terrestres, de elementos geográficos e fisiográficos significativos. Apresenta fenômenos naturais extraordinários, possui áreas de excepcional beleza natural e importância estética e cênica. “Tem a Serra Geral também para você subir e enxergar assim de longe. Tem várias nascentes. Tem buritizal. O buritizal é uma paisagem muito bonita assim de olhar de longe. Por cima, de longe, vê as copas. Encostado, você vê os troncos, muitos troncos. Tem veredas aqui que some de vista. Aterriza até avião pequeno, tem, lugar. Tem lugar aí que chama Campo Grande.”

 

A região do Terra Ronca, de singular beleza cênica, localiza-se no Município de São Domingos, a Nordeste do Estado de Goiás, região cortada pela Cordilheira Calcária e pela Serra Geral, na divisa de Goiás com a Bahia. Aí se localiza o Parque Estadual de Terra Ronca, com 50 mil hectares, criado em 1989 e a Área de Proteção Ambiental da Serra Geral de Goiás, com 60 mil hectares, cujo objetivo é a preservação e manutenção das nascentes e dos valores ecológicos. A televisão já descobriu a beleza do panorama. A mini-série Grande Sertão: Veredas foi filmada em Terra Ronca. Há duas explicações para a toponímia local. Uma delas consta de informações oficiais sobre o Parque Estadual da Terra Ronca, cujo nome adviria do som produzido por rios subterrâneos. Nada pudemos ouvir, nem fora, nem dentro da caverna até onde pudemos penetrar, que comprovasse os aludidos roncos telúricos. Outra explicação, de cunho histórico, foi dada por um morador de São João, segundo o qual a denominação tem origem nas pisadas de cavalos. Quando os primeiros cavaleiros peregrinos acorriam à festa de Bom Jesus da Lapa, ao passar pela Fazenda Terra Ronca, as ferraduras provocavam sons que repercutiam na outrora florestada boca da caverna, onde jatobás e outras árvores gigantescas criavam um profundo silêncio que permitia a repercussão do som. “Ao bater no chão, as patas estrondavam, provocando um barulho tipo uma zoada num tambor. A versão parece pouco digna de credibilidade pois a vegetação é antes um elemento de absorção que de reflexão do som. Nas atuais condições de desmatamento sim, o som reverberaria e ecoaria ao refletir nas pedras. Uma variação, mais plausível, relatada pelo guia espeleológico Alziro Vieira de Souza, atribui a denominação de Terra Ronca ao som que os cascos das cavalgaduras produziam sobre o terreno fofo das veredas.


 

Hidrografia

“Daí longe em longe, os brejos vão virando rios.

Buritizal vem com eles, buriti se segue, segue.

Para trocar de bacia,

o senhor sobe, por ladeiras de beira de mesa,

entra de bruto na chapada,

chapadão que não se devolve mais. ”[6]

 

            A região apresenta uma rede de drenagem bastante rica e extensa.Todos os cursos d’água da região, como o Rio Angélica, o maior rio subterrâneo da América Latina e o Rio São Vicente, do qual é afluente, o Divinópolis, os córregos São João, do Soluço, do Cipó, Cana Brava, Grotão, Jataí; o Ribeirão São Vicente, o Rio São Bernardo, o Rio do Freio e o Rio da Lapa, que atravessa a Caverna de Terra Ronca, dentre outros, provêm de nascentes situadas ao pé da Serra Geral de Goiás, na divisa com a Bahia. Seus mananciais localizam-se nas mais belas veredas da região. São tributários dos rios São Domingos e São Mateus e esses, afluentes de um rio de extraordinária beleza, o Paranã, da bacia do Tocantins. Impressiona ao visitante advindo de regiões mais urbanizadas, a cor esverdeada, límpida, hialina e luminosa das águas desses rios e riachos. “Isto é uma riqueza imensa. Tanto rio nestes cerrados!” “

 

Há muito não sabíamos de águas de rio potáveis, sem contaminação biológica ou poluição química, nas quais se pode banhar sem graves riscos à saúde e foi surpreendente encontrar alguns cursos d’água com tais qualidades correndo sob as pontes que atravessávamos pelas estradas. Mais do que águas potáveis, a região possui águas capazes de limpar, purificar e curar doentes. Seja pelos transcendentais poderes da fé, seja pela dissolução de minerais terapêuticos em águas como as do Rio da Lapa ou da mina da Água Benta, na Caverna da Terra Ronca, o certo é que milhares de romeiros acorrem anualmente à região em busca de seus poderes miraculosos. “E quem já ficou doente da água do rio? Quem já teve febre braba, febre malina, pereba, sarna ou coceira?”

 

SIGNIFICADO UNIVERSAL DO RIO

O rio, com suas águas a fluir, são um simbolismo do fluxo da vida e da morte, da fertilidade, da renovação. Como a existência humana, o rio ora corre lenta e placidamente, ora despenca-se de alturas. Ora segue em trajetórias retas, ora sinuosas, como é o curso de nossas vidas. Pode-se remontar as águas e retornar à nascente, pode-se acompanhar a corrente, em direção ao destino final. Pode-se tentar a travessia entre as duas margens, aquela onde nos situamos, a nossa vida, e a oposta, nossos sonhos e aspirações. A corrente, sucessão de desejos, sentimentos, sonhos e intenções, a variedade dos desvios, águas que vêm juntar-se ao rio antes que atinja a foz, em outro rio, em um lago, um oceano.

 

            Por toda a parte constata-se que a água é o grande artífice responsável pelo que há de mais peculiar na paisagem da região, ora esculpindo, junto com os ventos, montanhas rendilhadas, ora lapidando e modelando as anfractuosidades das profundezas das grutas. Na paisagem de Terra Ronca as águas comportam-se de forma muito peculiar em relação à terra, penetrando e ressurgindo sem a menor cerimônia em suas entranhas, em silêncio ou a rugir desesperadamente, o que, explicaria a toponímia Terra Ronca. Essa é talvez a mais impressionante característica das águas dessa região, a facilidade com que desaparecem ou ressurgem das profundidades da terra, a intimidade que mantém com as regiões subterrâneas. Na época chuvosa, quando se verifica a vazão máxima, as atividades de turismo espeleológico podem ser afetadas adversamente já que os rios sobem e podem aumentar de volume de forma súbita e descontrolada, inundando cavernas como a Terra Ronca e Angélica e oferecendo graves riscos para o visitante. Graças à barragem de uma hidrelétrica, a cidade de São Domingos ganhou o privilégio de poder contemplar-se nas águas plácidas de um lago muito azul, com 82 quilômetros quadrados e 35 metros de profundidade, o que confere grande qualidade paisagística urbana, ainda que de forma contrastante com o que deveria ter sido o aspecto original de uma cidade típica do ambiente seco dos cerrados. 

 

Na região há rios de águas fria e de águas mornas, há rios subterrâneos como o “Rio de São Domingos, que corre largo espaço por baixo do chão, sem se deixar ver senão em algumas paragens por buracos.”[7] Estes rios nascem na Serra Geral e entram, ao que dizem, debaixo da cadeia acima referida, onde se unem, e à distância de mais de três léguas para o oeste, reaparecem na superfície da terra em uma corrente, formando o Rio São Bernardo que depois se lança no Rio Paraná. Uma pessoa da fazenda levou-me a ver o sítio onde o rio, que aqui passa, desaparece na montanha; e, contra minha expectativa, observei que o rio não entra por uma caverna aberta, porém, sim, por uma abertura muito abaixo da superfície da água, formando o que os brasileiros chamam sumidouro: a corrente, aqui muito rápida, bate de encontro à face quase perpendicular da rocha calcária e, formando uns poucos remoinhos, perde-se na voragem em baixo. ” George Gardner referia-se a uma das maravilhas da região, o Sumidouro do São Domingos, a 20 quilômetros da cidade, onde um rio inteiro é engolido pela terra, desaparecendo em suas entranhas e passando a correr por trezentos quilômetros sob rochas..

 

Há cachoeiras como a de São Domingos, quedas sucessivas em uma extensão de meio quilômetro. A de São Bernardo, com uns quatro metros de altura e uma grande praia de areia. A de Santo Antônio com uma só queda, uma praia e um poço que serve como piscina para os banhistas, local de grande beleza e perigo por causa das perigosas cobras que aí vivem. A cachoeira das Palmeiras, com duas quedas nas quais a água mais parece escorrer do que cair e uma única e generosa cascata. A de Jericó, no Rio Divinópolis, em São Domingos. A cachoeira de Correia Grande, situada na mais bela vereda da região, na qual um rio de dimensões de dimensões mínimas despenca subitamente sob a forma de cachoeira. A Cachoeira da Lapa, distante seis quilômetros da sede do município, com uma única queda e uma piscina. A Cachoeira do Rio do Freio, sete pequenas quedas às quais só se tem acesso pelo leito pedregoso ou pelas margens rochosas e escarpadas do rio cujo nome é uma corruptela de Rio do Frei, homenagem a um religioso morto nessas águas pelos índios que tentava catequizar, no ano de 1900. No trecho após as quedas, o Rio do Freio desaparece sob enorme rocha, no local chamado Sumidouro, ressurgindo meio quilômetro depois, ao desaguar suas águas tépidas nas geladas águas do Rio das Vacas.

 

 

SIGNIFICADO UNIVERSAL DAS CACHOEIRAS

“As cachoeiras, sob um ponto de vista universal, simbolizam a permanência da forma em contraponto à mutação da matéria. O caráter dinâmico e impermanente de uma formação hídrica em constante mutação contrastam com a impassibilidade da montanha e dos rochedos. A montanha, símbolo ascendente forma um par fundamental com a água, símbolo descendente, ambas estáticas e permanentes, elementos simbólicos de ligação do mundo terreno com o céu. Quando a água despenca da montanha, seu corpo, até então uno e contínuo, é despedaçado e se estilhaça em gotas, tornando-se dinâmico e passageiro. As cachoeiras são como o cinema, no qual a rápida sucessão dos quadros fixos, quando submetidos a uma seqüência de movimentos mais rápidos do que nossa capacidade de percepção, cria a impressão de uma cena contínua. Manifestações puramente ilusórias, na qual as gotas d’água se substituem umas às outras e se renovam a cada fração de segundo, gerando a impressão de um só corpo único.

Sob um ponto de vista esotérico, o movimento das cachoeiras tem origem no que é Imutável, como se tivesse origem em um motor imóvel capaz de produzir correntes de força que, domadas, permitem o aproveitamento espiritual. Quando as águas se precipitam em um poço imóvel, todas manifestações são reabsorvidas. As cachoeiras unem a nuvem à espuma, como elas feitas puramente de água e ar. São uma centelha, como um fogo líquido e passageiro que logo se perde, desprendendo um vapor como fumaça.

Para muitas culturas, povos e religiões, as cachoeiras assumem profundos significados, servindo de morada a entidades imateriais, criaturas mágicas e legendárias que acumulam as energias sutis que fluem das águas. Para outros, são dotadas de uma alma própria. Mesmo quem não creia nisto, ao observá-las não pode deixar de sentir a manifestação das misteriosas forças latentes ocultas no seio da natureza, que inspiram profundos sentimentos de respeito, pânico e mesmo terror, associados ao precipício e às silenciosas profundezas de poços que devoram as águas vivas e em movimento que, ao desaparecerem, tornam-se mortas e estagnadas. Para o ser humano, a contemplação das águas sempre suscitou profundos e contraditórios estados de consciência. A visão de um volume fluido e descomunal a se precipitar em um abismo desperta respeito e adoração.”

“Depois de viajar cerca de uma légua, chegamos muito perto da Serra Geral e continuamos a jornada ao longo da sua base até encontrar um sítio muito conveniente onde acampamos sob algumas árvores à beira de um pântano aberto, no centro do qual se erguia grande bosque de buritizeiros.”[8] As veredas, jardins criados pela Natureza em seus mais inspirados momentos, são uma feição típica do Centro Oeste na qual se conjugam os mais refinados atributos do mundo das águas e da vegetação. “O nome mesmo não é vereda. O nome mesmo é varge. Vereda é o nome que se dá aqui. ” “Mas aquela vargem lá em baixo, vereda que vocês chamam, é natural. Tudo verdinho.”

 

O patrimônio hídrico de Terra Ronca, assume, para o futuro da humanidade, de forma, quantitativa e qualitativa, o valor de uma reserva biológica e econômica de inestimável importância para a vida no planeta.

 


 

Geologia, Geomorfologia e Relevo

 

            A presença da Serra Geral forma um patamar contínuo como uma muralha no horizonte que delimita o platô geomorfológico do lado da Bahia, com alturas que variam entre 100 e 400 metros nas topografias ruiniformes talhadas nas encostas do entorno da Serra Geral.

 

Algumas elevações, estruturas sedimentares bem conservadas, destacam-se esparsas pelo vale e várzeas de aluvião de sedimentos da Baía do Paranã, em geral afloramentos calcários de formas rendilhadas, parecendo tão velhos quanto o mundo. Muitas dessas impressionantes formações cársticas apresentam rochas rendilhadas, algumas com rachaduras verticais e paralelas, sob as quais crescem cactos do gênero Cereus, mandacarus finos, compridos e não ramificados que sobem retos em direção ao céu, criando linhas paralelas às linhas de fratura das rochas. O termo cárstico, que deriva do iugoslavo e significa campo de pedras calcárias, designa as formações rochosas calcárias rendilhadas pelo tempo e pelas intempéries. “É uma montanha em ruínas. Surge disforme, rachando sob o período de tormentas súbitas e insolações intensas desjungida e estalada num desmoronamento secular e bruto.” Dentre os afloramentos calcários citem-se o Morro do Meio, profusamente habitado por mocós, o Morro do Beda e o Morro da Cabra, notável porque, em seus pináculos, os urubus fazem ninhos nos quais vêm dormir, pontilhando com negras silhuetas os tons sangüíneos do céu em horas crepusculares.

 

Há também morros, como o do Moleque, que representam o resto de antigas superfícies erodidas em antigas eras. O Morro do Moleque é o morro testemunho símbolo da região, servindo de marca e identidade à cidade de São Domingos, cuja paisagem domina. De forma cônica e recortada, com 400 metros de altura, seu aspecto é de extrema beleza cênica, lembrando outros mundos e outros tempos, apresentando forte densidade dramática. Como o Adão de Michelângelo diante de Deus, parece contemplar e quase estender-se, com nostalgia, em direção à estrutura tabular, em forma de mesa, da Serra Geral da qual parece ter sido arrancado de forma violenta e compulsória. É forte seu significado simbólico para a população que organiza excursões e sobe por trilhas até o seu cume em dias de grande reboliço.

           

Outros morros são dignos de nota. A Pedra Talhada assemelha-se a uma escultura feita por gigantescos artífices humanos em pedra calcária. O Morro da Cruz, que tinha em seu topo um cruzeiro que desapareceu e não foi recolocado até hoje. O Morro Redondo onde outrora se recolhiam pedras chatas e grandes com as quais se construíam fornos para a confecção da farinha. O Morro do Pique, com um poço, o Poço da Camisa, onde um homem caiu e só escapou da morte quando despencava em direção ao abismo por ter sua camisa se prendido aos galhos de uma árvore. Um eco assustador responde quando se atiram pedras no fundo do poço, o que leva o nativo a afirmar que é a resposta do poço a quem lhe atira pedras.

 

SIGNIFICADO UNIVERSAL DAS MONTANHAS

Múltiplos significados simbólicos são atribuídos à montanha. Por ser alta, vertical, elevada, próxima do céu, significa a transcendência. É o objetivo da ascensão humana, elemento de ligação entre a terra e o céu. Exprime ainda as noções de estabilidade, imutabilidade, de pureza. É ao mesmo tempo o centro e o eixo do mundo. Todos os povos e países têm sua montanha sagrada, via terrestre que conduz aos céus, lugar dos deuses, ponto de encontro com a divindade. É sobre uma alta montanha que ocorre a transfiguração de Cristo.

As dolinas, formações geomorfológicas muito características de Goiás, são depressões acentuadas nos terrenos, de forma comumente circular e com profundidades e larguras variáveis. Ocorrem em terrenos calcários, sendo causadas por dissolução ou desmoronamento de tetos de cavernas, encontrando-se, geralmente, água em seu fundo. A Caverna de Terra Ronca apresenta algumas dolinas, a que os guias dão o nome de clarabóias, abrindo-se para o fundo das cavidades subterrâneas e permitindo a penetração zenital de iluminação solar. Uma delas é conhecida como o Oco das Araras. Outra dolina de porte é a do Pesqueiro.


 

Espeleologia

 

A gruta nem é negra

de tantos negrumes que se fundem

nos ângulos agudos:

a gruta é branca, e chama.

Entram curvos como numa igreja

feita para fiéis ajoelhados.

Entram baixos

terreais

na posição dos mortos, quase.

A gruta é funda,

a gruta é mais extensa que a gruta (...)

Prismas de luz primeira despertando

de uma dobra qualquer de rocha mansa.

Cantar angélico subindo

em meio à cega fauna cavernícola

e dizendo de céus mais que cristãos

sobre o musgo, o calcário, o tímido medo

da condição vivente.

 

A excepcional feição do complexo de cavidades subterrâneas situa os municípios de São Domingos e Guarani de Goiás entre as mais importantes e excepcionais regiões espeleológicas do país e atrai, de forma crescente, cientistas, espeleólogos, espeleístas e turistas. A espeleologia assume aspectos tanto de uma ciência quanto de um esporte. Espeleólogos franceses e especialistas da Universidade de Brasília vêm visitando a região desde 1960. Com mais de mil cavidades subterrâneas cuja datação remonta a 620 milhões de anos, das quais apenas umas quarenta grutas e cavernas já foram exploradas cientificamente e mapeadas por espeleólogos[9], ali se encontram as três cavernas que pudemos visitar, Terra Ronca, Angélica e São Mateus e muitas outras como a de São Bernardo e a de São Vicente, essa perigosa e sem visitação.

           

Nas áreas visitadas impressionou-nos as inúmeras formas e cores apresentadas pelos espeleotemas. O domíno das cavernas apresenta uma infinidade de formas de espeleotemas. Estalactites e estalagmites, termo derivado do grego stalactos, que cai de gota em gota, são as mais conhecidas porém há enorme diversidade de formas sob os nomes de represas, canudos de refresco, cortinas, torres, alvéolos, lapias, espirocones, helictites ramificadas, trompas, pérolas, chaminés de fada, vulcões e outras formações cujas denominações são determinadas pela semelhança que apresentam com outros fenômenos. As estalactites e estalagmites assumem as mais variadas e bizarras formas de fantásticas imagens pareidólicas. A palavra pareidolia não consta de dicionários comuns. É definida como “imagem ilusória, construída pela fantasia, a partir de elementos reais. O exemplo típico é a série imensa de figurações que se observam nas nuvens, quando contempladas atentamente. É reconhecida como falsa por quem a experimenta.”

 

Em Terra Ronca os guias são treinados para acompanhar turistas a locais que muitas vezes já lhes são familiares e, segundo informações orais, não levam grupos maiores do que cinco pessoas e um só grupo por caverna de cada vez. Contudo, encontramos outro grupo em uma caverna que visitávamos. Os visitantes usavam sandálias havaianas, o que parece totalmente impróprio para o piso escorregadio das cavernas. Há cerca de doze guias para toda a região, pertencentes a uma entidade sem sede chamada Associação Ecológica de Monitores Ambientais. O equipamento para visitação não era suficiente para todo nosso grupo, composto apenas por quatro pessoas, inclusive o guia. Havia capacetes para todos mas apenas dois com luz de carbureto e, para os outros dois visitantes, uma única lanterna. O equipamento é propriedade da associação, comum a todos os associados. Essa associação não dispõe de uma sede, o que é indispensável já que têm de receber e ministrar aulas e palestras, promover treinamento, inclusive em patrimônio cultural, guardar equipamentos. Nas cavernas de Terra Ronca e Angélica, quando ocorrem chuvas súbitas, há perigo de inundações súbitas, perigosas para quem está dentro. Os romeiros usam das cavidades subterrâneas de forma totalmente descontrolada, com graves riscos à sua segurança e ao frágil  ambiente da caverna.

 

SIGNIFICADO UNIVERSAL DAS CAVERNAS

Para a humanidade, a caverna é um arquétipo do útero materno. Seus salões e corredores assemelhados às entranhas humanas, simbolizam as entranhas do planeta, do corpo feminino da terra. Penetrar na caverna é como um regressum ad uterum. Essas cavidades sombrias são o mundo das sombras e das trevas, com locais aonde nunca penetrou a luz do sol. Dos limites invisíveis desses abismos surgem seres lendários e monstruosos do inconsciente coletivo. Do fundo da caverna, o homem contempla a luz. Lá dentro lida apenas com as sombras e ilusões. Símbolo do inconsciente, explorar uma gruta é como a exploração do eu primitivo, apresentando os mesmos perigos. “Quando nos deparamos com a entrada de uma caverna, somos tomados por um sentimento místico, de temor e desejo. Temor das Trevas e do Desconhecido. Desejo de encontrar as chaves de misdtérios sequer suspeitados. [10]Local de ritos de iniciação de onde o iniciado é libertado para sair à luz, num sentido de ascender para fora. A caverna estabelece contato com a morte, a vida, a germinação, por isso é local onde se condensam forças mágicas e extranaturais. Sendo um receptáculo das forças telúricas e não das forças celestiais, assume o papel de um lugar trágico, de passagem da terra para o céu. As grutas são local de sepultamentos simulados. Caim teria enterrado Abel em uma caverna, soterrando suas culpas para que ninguém viesse a saber que era ele o homicida. Nas cavernas se pratica uma arqueologia do eu. Local sagrado, no qual se pratica meditação, freqüentemente assume a função de templo ou santuário, e adoração, mais comumente a adoração à Virgem, por ser um local onde o elemento masculino, a luz do céu e do sol nunca entrou. Simbolicamente a terra, princípio feminino, opõe-se ao céu, princípio masculino. Cristo teria nascido e sido sepultado em uma gruta, uma lapa.

 

A Visitação de Cavernas

As cavernas são um dos mais frágeis e sensíveis ambientes do planeta, o que lhe confere excepcional potencial e valor cultural e científico. Uma cavidade subterrânea é um repositório de informações sobre a história, a geologia, a geomorfologia, a evolução dos minerais, da vida, do clima do planeta. “Os espeleotemas (estalactites e estalagmites) permitem obter registro da variação da temperatura atmosférica nas últimas centenas de milhares de anos, estudos fundamentais para entendimento do efeito estufa e da evolução da temperatura global do planeta. Muitas cavernas apresentam também ricos registro paleontológico e arqueológico, o qual possibilita reconstituir a fauna e a flora que existiam na região e a história do ser humano. Nesse sentido, as cavernas funcionam como ‘disquetes de computador’ onde as informações foram cuidadosamente gravadas e assim permanecem, à espera de serem lidas e interpretadas pelos cientistas.

A destruição de determinadas cavernas pode, portanto, significar a perda de registro científico imprescindível para se entender o passado e planejar nosso futuro na Terra. A perda desse registro é comparável ao prejuízo causado pelo incêndio de uma biblioteca ou de um arquivo de documentos.[11]

A iniciativa de abertura de uma caverna à visitação pública deve ser antecedida por profundo conhecimento do ambiente cavernícola. Para prever os impactos a que estarão expostos seus meios físico e biológico e os significados e valores que o ser humano lhe confere e também pela segurança do visitante. A visitação pública sem criteriosa previsão dos riscos a que estarão expostos os visitantes é uma irresponsabilidade. Há riscos imediatos, decorrentes da perigosa topografia, do piso escorregadio e da possibilidade de queda de pedras ou espeleotemas e riscos mediatos, como o de contrair protozooses. As cavernas são propícias à proliferação de espécies patogênicas. Tanto no interior quanto em suas áreas externas ou intermediárias, pode haver fungos que crescem sobre fezes de morcegos. Se inalados, os esporos podem ser causa de uma doença das vias respiratórias conhecida como histoplasmose. Em Bonito, MS, detectou-se em cavernas turísticas e imediações, a presença dos agentes etiológicos da leishmaniose. Embora de forma precária, foram feitas pesquisas sorológicas em moradores, animais domésticos e silvestres, inclusive de sangue frio, além dos vetores de transmissão desta doença, como os flebotomídeos, os insetos hematófagos e os nematóceros.

A visitação exige cuidadoso e pormenorizado planejamento, procurando sempre reduzir os impactos adversos o que, muitas vezes, exige intervenções construtivas. Estruturas reversíveis como plataformas e passarelas para circulação dos visitantes, são alternativa para impedir o pisoteio sobre espeleotemas. O material não deve ser oxidável nem liberar elementos alheios ao ambiente, sob pena de tingir de outras cores as concrecções. A técnica construtiva deve evitar danos como escavações. Sempre que possível deve ser considerada a acessibilidade de pessoas portadoras de deficiências até pontos onde possam penetrar sem riscos de segurança.

Os guias de turismo espeleológico devem ser objeto de acurada formação, aprimoramento  e treinamento, recomendando-se a utilização do pessoal nativo. Além da geração de empregos para a população tradicional, ameaçada de deslocamento para fora dos limites do parque, os nativos mantém uma ligação biográfica e afetiva com a região, fator favorável à preservação.

Uma condição fundamental à visitação é a determinação da capacidade de carga da caverna, isto é, a capacidade suporte da gruta à visitação pública. Representa o número máximo de visitantes admissível por período de tempo no interior da caverna e mesmo em adjacências, sem que sejam provocados danos permanentes e significativos a seus aspectos mais relevantes. A visitação perturba a fauna, produz poluição microfloral, emite luz, umidade e calor. Há um limite para o tempo e o número de pessoas permanecerem nesses ambientes frágeis e sensíveis, sobretudo em cavernas que possuem rios subterrâneos ou são sujeitas a inundações. Quanto mais fechada a caverna, quanto mais baixo é seu nível energético e tanto pior o efeito da presença humana. Um impacto medido segundo a variação dos níveis de temperatura e umidade desprendidas pelos visitantes sobretudo pela respiração. Há grutas em que o aumento de níveis de energia gerado por um único período de tempo da visita de um grupo pode ser maior do que todas as variações experimentadas ao longo de milhares de anos. Calor e a umidade propiciam o surgimento de algas e fungos sobre os espeleotemas, mudando a coloração de forma irreversível.

Por isto, também a iluminação artificial de uma gruta impõe grandes exigências. As obras de instalação e a especificação do tipo de lâmpadas empregadas dependem de como quanto alteram os níveis térmicos e luminosos. No caso de quebra de uma lâmpada pode ocorrer emissão de gazes, com efeitos sobre os espeleotemas e a bioespeleologia. Quando não há grande fluxo de visitação, luz de carbureto com gerador de acetileno é a iluminação menos danosa. Acesas apenas durante ao período da visita, não exigem escavações para passagem de fios e tubulação nem aumentam a temperatura. Não se recomenda porém para visitação de grandes grupos pois, ocorrendo liberação de fuligem, os espeleotemas serão escurecidos. A iluminação de uma gruta deve-se prever quatro sistemas luminosos, para caminhamento, volume, detalhamento e segurança. Mesmo fotografias no interior de grutas deve ser objeto de restrições pois os flashs, da mesma forma que afetam cores de pinturas em museus e igrejas, danificam espeleotemas.

Sem esquecer-se que as cavidades subterrâneas são bens da União e que quem não tem condições financeiras deveria poder visitá-las, não se recomenda a cobrança de valores baixos aos visitantes. O valor concedido pelo visitante é proporcional ao que paga para conhecê-la. Em Bonito o turista paga cinco a dez vezes mais que em Terra Ronca e os danos são muito menores.

 

Caverna de Terra Ronca

 

Tanto o exterior quanto o interior da Caverna de Terra Ronca são portentosos. Não existem informações disponíveis sobre a gênese, evolução e outros aspectos dessa cavidade. As paredes externas são mais ou menos planas e a boca tem a forma aproximada de um arco pleno, semelhante a um gigantesco arco do triunfo. Mesmo não sendo a mais o mais alto pórtico de entrada de cavidade subterrânea no Brasil (o pórtico da Gruta dos Brejões na Bahia tem 106 m de altura), seus 90 m de altura impressionam o visitante. Ao redor, gigantescas barrigudas emolduram a entrada para o mundo subterrâneo. O mais hábil paisagista não poderia escolher outra árvore mais impressionante e de escala mais adequada à grande cavidade.

 

Também a paisagem do caminho que conduz à entrada da prodigiosa Caverna Terra Ronca é de grande beleza, com árvores e trepadeiras floridas na mata ciliar que envolve as águas do Rio da Lapa. As águas do rio, que correm em direção à boca da gruta e aí penetram, surpreendem pela rara coloração esverdeada, um tom claro e esbranquiçado, como em rios de montanha nascidos de geleiras, lembrando o tom verde da espessura de placas de vidro translúcido.

 

À boca da gruta, sob o pórtico, começam a despontar as primeiras estalactites. Não são muitas nem são grandes, se bem que fotos antigas mostrem um número muito maior dessas concrecções na abóbada, que teriam caído por causa dos estrondos do foguetório soltado na época da romaria. Em alguns pontos há pedras que rolaram ou se desprenderam do alto e isto exige o parecer de especialista em geotécnica. Nas cavidades das pedras moram psitacídeos, periquitos e maracanãs, cuja gritaria e constante algazarra contrasta com o ar solene da caverna que lembra um templo de eras perdidas.

 

À esquerda da entrada localiza-se o altar com um crucifixo ao centro e outras imagens. Tão logo se adentra o imenso salão, já se pode observar as estalactites. Algumas contorcidas, de formas helicoidais. Em seguida, em uma fenda na rocha, foi instalada a Sala dos Milagres, onde se guardam ex-votos e muletas dos peregrinos miraculados. Entranhando-se um pouco mais há uma pequena nascente que goteja do teto para o piso, chamada Água Benta, cuja água é usada para os fiéis se persignarem enquanto pedem ou agradecem o milagre.

 

A impressão que tem o visitante à medida que prossegue é que está entrando pela garganta de uma gigantesca criatura. A temperatura, a umidade, as formas orgânicas, tudo induz à percepção de que a caverna é um ser vivo. Uma mina d’água marca o último limite entre a luz e as trevas que, a partir daí, tornam-se assustadoras. “Aqui dentro da gruta, noite e dia é uma coisa só, tanto faz[12]

 

Aos fundos e à esquerda, já se divisa a primeira e enorme estalagmite, em forma de totem. Quando se pensa que o trabalho da natureza como escultora depende de gotas que pingam, uma a uma, de quarenta em quarenta minutos e que cada gota deixa um resíduo de carbonato de cálcio que vai solidificando, imagina-se que a idade desse totem só pode ser medida em milênios. É uma irresponsabilidade que espeleotemas do mais alto valor escultórico sejam pisoteados por centenas de romeiros e visitantes da caverna, como no caso da represa, formação de travertino em forma de pias que se intercomunicam, como cascatas uma a jorrar sobre a outra.

 

Seguindo gruta adentro, o visitante tem de seguir curvado até sair novamente ao ar livre. O passeio vai até o Salão dos Namorados a partir de onde o caminho fica íngreme e a correnteza mais forte. A caverna tem dois trechos, chamados Terra Ronca I e Terra Ronca II, separados por um espaço vazio, lembrando um canyon de mais ou menos um quilômetro de diâmetro, conhecido como Buraco das Araras. O trecho da Terra Ronca I tem, no teto, duas clarabóias, provavelmente dolinas surgidas do desabamento da abóbada. Depois do canyon, o rio continua seu curso, tornando a entrar na Terra Ronca I, a mais ou menos dois quilômetros da entrada. Quando águas subterrâneas afloram ao ar livre, dá-se o nome de ressurgência. A ressurgência do Rio da Lapa fica na Fazenda Buracão. As ressurgências, canyons, dolinas, uvalas, poljes, vales cegos, sumidouros, cavernas e abrigos sob rocha são formas reintrantes do relevo cárstico. No interior da gruta, a temperatura varia segundo a proximidade do rio.  Quanto mais próximo, mais frio, quanto mais longe mais quente se torna o ambiente.

 

Gruta Angélica

 

Desde a boca da gruta situada em morreiras de pedra calcária, já se pode admirar a magnificência dos salões da caverna, decorados de forma detalhada e esmerada que a Terra Ronca com a qual tem em comum as águas de um rio que, deslizando em direção a sua boca, nela penetra, gerando uma paisagem de praias de areias claras, sobre as quais goteja a solução de carbonato de cálcio formadora dos espeleotemas. Mesmo as gotas que tombam sobre a fina areia criam formas pétreas que, diversamente das estalactites e estalagmites, são soltas e destacadas das rochas. É inacreditável a beleza da obra da natureza nas cavidades subterrâneas dessa caverna. Atinge-se primeiro o Salão dos Tubarões, uma enorme boca com alvíssimos dentes arreganhados para o visitante. A seguir, atravessa-se o impressionante Corredor do Cérebro, um alvéolo sob a forma de corredor sinuoso ao longo do teto, sobre o qual cintila uma alva e perfeita réplica de um cérebro humano. Visita-se o Salão das Cortinas e em seguida o Salão dos Canudos e, finalmente, o Salão dos Espelhos no centro do qual um espelho d’água duplica a esplendorosa decoração calcária. A riqueza e fidelidade a outras formas conhecidas que assumem as imagens pareidólicas são inesquecíveis, havendo desde padrões fálicos a imagens sacras como uma à qual se deu o nome de Santa Angélica. É de se lamentar a quantidade de estalactites quebradas e caídas pelo chão. Nós mesmos, por diversas vezes, chocávamos os capacetes contra o teto da gruta, felizmente sem quebrar concrecções. Há que se caminhar sobre espeleotemas e, muitas vezes, segurar-se neles. A oleosidade das mãos modifica-lhes a cor e composição química. Em uma pousada das vizinhanças achamos um pedaço de um espeleotema com cerca de vinte centímetros por cinco de diâmetro. A proprietária havia retomado de um hóspede inescrupuloso. Mesmo que venha a ser devolvida à gruta de onde se originou, estará para sempre descontextualizada e sem possibilidade de recompor o ambiente original. O preço cobrado pelo proprietário para a visitação da Gruta Angélica, R$ 1,00, é um valor irrisório, quando comparado aos níveis de destruição causados por visitantes.

 

Gruta de São Mateus

 

Obra prima da natureza, local onde a terra exibe as mais excepcionais e impressionantes formas de suas entranhas, aí foram visitados apenas o Salão dos Peixinhos, o Salão dos Chuveirinhos com quedas de água que lhe dão o nome e o Salão dos Setecentos, em uma incursão que durou mais de cinco horas. A Gruta aprofunda-se indefinidamente pelo planeta adentro, oferecendo espetáculos visuais inauditos em cerca de doze quilômetros de extensão, com trechos ainda não percorridos. Para entrar é necessário passar por um apertado buraco onde mal dá para passar o corpo, tendo de se descer por meio de uma corda por uns cinco metros. Atinge-se então um primeiro patamar de onde não se divisa mais qualquer tipo de iluminação natural. Cem metros depois encontra-se um rio borbulhante. A quantidade e diversidade de formas, cores e tamanho das formações calcárias é algo indescritível. Nos inúmeros salões há florestas de espeleotemas, estalactites gigantescas, lugares impenetrados e impenetráveis, pareidolias de formas que podem assustar ou encantar. O preço cobrado pelo proprietário para a visitação é de R$ 2,00. Não deveria ser autorizada a visitação senão para pesquisas científicas, mesmo assim de forma controlada e com o aval de instituição idônea.

 


 

Vegetação

 

Olha que cheirinho muito bom de flor...

 

É impressionante a biodiversidade vegetal da região. Árvores como mutamba, caraibeira de flor amarela, pau-pombo, pau d’óleo, pau-pombinho, pau-pilão, pau-pilão, pau-terra, pau-santo, jacaré, puçá, pequi, buriti, araticum, coco-catolé, coco-indaiá, coco-macaúba, buriti, caju, marmelada, goiaba, baru, chichá, cagaita, coco-azedinho, grão-de-galo, bureré ou puxa-puxa, jatobá-da-mata, jatobá-do-campo, gameleira, pacari-da-mata, sucupira preta, folha-miúda, mamoninha, pereiro, tamboril, pimenta-de-macaco, tingui.

 

Cinco árvores destacavam-se no cerrado pela intensa e feérica floração: o ipê (de três espécies, duas amarelas e uma roxa), o mulungu, de flores coral, o jacarandá-mimoso de flores violetas, a Cordia trichotoma a que dão o nome de caraíba, de flores brancas e a sucupira branca ou sicupira como pronunciam, de flores anil violáceo.

 

Fauna

D’entre as folhas das mangabeiras e cajueiros,

desprendiam-se os sons harmoniosos dos passaros em seus gorgeios matutinos.

Então um como hymno fez-se ouvir e a passarada passou a pullular de ramo em ramo,

sobre a relva desbotada dos campos, ou sobre a areia da estrada.

Era o romper da aurora.”

 

Segundo as informações orais de moradores de Terra Ronca, são vistos na região animais como o tamanduá-mirim (existiria também o tamanduá-bandeira), o caitetu, o luiz-cacheiro, forma local para ouriço-cacheiro, veados campeiro e mateiro. O macho tem chifre e a fêmea não. Os macacos prego, guariba, sõin, símio pequenino e de rabo longo. O tatu-verdadeiro e o tatu-bola. Onças preta, pintada e parda. O lobo-guará, raposas, o cachorro-do-mato. Quatis, pacas, capivaras, mocós e muitos coelhos. Iguana, jacaré, tiú.

 

Dentre as incontáveis espécies de aves, pato-do-mato, nhambu, jacu, coã, alma-de-gato, cancão, siriema, ema, espécie mais rara da qual, nos dias em que ali estivemos havia sido visto um casal que logo desapareceu, papagaio-galego, ciganinha ou pirrura, espécie endêmica e talvez ameaçada ou em extinção, garças, tucanos, arara-azul e, nas morreiras, arara-vermelha. Urubu e urubu-rei, este bem mais raro, nunca é visto em número superior a cinco ou seis, revoando com os urubus comuns, a cujos bandos se juntam. Pássaros canoros fazem o fundo de qualquer lugar aonde se vá. Um dos mais belos corais é formado por bandos de pássaros pretos.

 

Cobras coral, cascavel, jararaca, bocá, jaracuçus de dois tipos, as pretas e  as avermelhados, jibóia, sucuri. Haviam achado uma sucuri com dois metros há poucos dias na ponte do rio junto à Caverna Angélica. Na água dos rios encontram-se arraias com ferrão, piabanha, pacu, lambari, traíra, bagre.

 

Nas cavernas, morcegos, tristes borboletas sem cor de caverna, sempre a esvoaçar silenciosamente, aranhas e uma criatura semelhante a um aracnídeo de aspecto ressequido e de longas patas a que os guias dão um nome que soa como alipricho ou adpricho, presumivelmente uma corruptela da denominação científica aprendida com os espeleólogos. O bagre cego, albino e transparente vive nas trevas das águas interiores de caverna. Não é pretensão deste trabalho fazer um levantamento faunístico mas registrar as espécies mencionadas pelos habitantes de Terra Ronca, em especial pelos funcionários do Parque.

 

Sítios de valor arqueológico

O desenho ocre

sobre o mais antigo

desenho pensado.

(...)

touro de caverna

em pó de oligisto

lá onde eu existo

 

            O Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos do Iphan registra três sítios arqueológicos na região da Terra Ronca. O Sítio de Terra Ronca, de Angélica e de Pau Pombo. Embora uma foto da entrada de Terra Ronca tenha mostrado algo que poderia ser interpretado como grafismos, só pudemos localizar um deles, o da Fazenda Pau Pombo, por tratar-se de um abrigo sob rochas com inscrições rupestres, grafismos geométricos, mas, no curto período de permanência na região, sem um arqueólogo, não poderíamos localizar os outros sítios arqueológicos. Abrimos mão desse rigor por considerar que é imprescindível que se promova uma investigação mais aprofundada e pormenorizada da arqueologia local, sob a forma da contratação de serviços de arqueologia acadêmica. Um rapaz[13] que trabalhou com a equipe que demarcou a área do Parque informou-nos ter visto inscrições sobre rocha, na Fazenda Pedra Branca, nas terras pertencentes a uma senhora chamada Valdete.

 

Sítios de valor paleontológico

 

Por essas correntes os restos de muitos dos animais da região

devem ser sepultados nas profundas cavernas por onde elas passam

e não é impossível que tais depósitos formem, em época remota,

temas de especulação dos geólogos do futuro.”

 

Segundo informações orais, em uma bocaina situada na parte superior da Gruta Angélica teria sido encontrado material fossilífero sob a forma de uma ossada que, segundo informação da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG a uma pessoa de Terra Ronca, estaria no Museu Nacional, no Rio de Janeiro. Não soubemos a que animal corresponde a ossada descoberta, presumindo-se tratar-se de mamíferos já extintos da megafauna do Pleistoceno

Sem um especialista em paleontologia e sem uma pesquisa primária e secundária aprofundada, é impossível para o Iphan informar sobre o potencial do material paleontológico da Terra Ronca.

 


 

Sítios de Valor Ecológico e Científico

 

Paisagem Cultural

 

Isto aqui já vem do bisavô, tataravô, nóis é nativo daqui.

A família vai crescendo, vai espalhando mas nóis continua aqui.

É um destino que o pai da gente deu, da gente trabalhar na roça mesmo.

Aqui na roça a gente planta arroz, feijão, milho, banana.

Cria vaquinha prá tomar um leite, tudo que a gente tem é daqui mesmo.

 

Paisagem é a expressão formal dos numerosos relacionamentos existentes em determinado período entre o indivíduo ou uma sociedade e um território topograficamente definido, cuja aparência é resultante de ação ou cuidados especiais, de fatores naturais e humanos e de uma combinação de ambos.[14] Uma paisagem cultural é um sítio que reúne, de forma conjunta e integrada, bens e valores culturais e naturais ou seja, significativas e harmoniosas interações entre o homem e o meio natural, o trabalho combinado da obra humana e da natureza, quando de excepcional valor universal. A paisagem tem triplo significado cultural:

 

é definida e caracterizada da maneira pela qual determinado território é percebido por um indivíduo ou por uma comunidade;

dá testemunho ao passado e ao presente do relacionamento existente entre os indivíduos e seu meio ambiente;

ajuda a especificar culturas locais, sensibilidades, práticas, crenças e tradições.”

Uma paisagem contínua que retém um papel social ativo na sociedade contemporânea, intimamente associada com o modo de vida tradicional, no qual o processo evolutivo está ainda em curso.”

 

A paisagem cultural constitui um sistema de grande dinamismo e complexidade, no espaço e no tempo. Além dos aspectos dos meios abiótico, biótico e antrópico que, primariamente, identificam seus valores mais imediatos, devem ainda ser considerados, secundariamente, outros fatores, atuando uns com os outros em viva e dinâmica relação.

 

Segundo a definição da Unesco, as paisagens culturais constituem sistemas complexos que consorciam diferentes bens e valores, culturais e naturais, apresentando monumentos, elementos ou estruturas de caráter arqueológico, inscrições, cavernas e combinação de elementos de excepcional valor desde o ponto de vista da história, da arte ou da ciência e sítios que reúnem obras conjunta do homem e da natureza, incluindo sítios arqueológicos, que tenham um excepcional valor desde o ponto de vista da história, da arte ou da ciência. Devem constituir exemplo destacado de habitat, estabelecimento humano tradicional ou de uso na região, ser representativo de uma ou mais culturas, especialmente se esses bens se tornam vulneráveis por efeitos de alterações irreversíveis, ou estar associado direta ou indiretamente com acontecimentos ou tradições vivas, com idéias ou crenças, de valor universal.

 

Para um especialista em patrimônio cultural, a feição como uma paisagem é dotada pela natureza, por excepcional que seja, não é menos importante quanto certas formas harmônicas de como o homem dela se apropria e nela deixam marcas e intervenções de seu convívio. Marcas tradicionais impressas no quadro natural, como as edificações, acabam por integrar-se ao ambiente, passando a constituir um novo conjunto. “Construir é colaborar com a terra: é colocar um marco humano numa paisagem, marco que a modificará para sempre[15] A mão humana não se dissocia do panorama. A memória também. “Olha esta estrada aqui. Anté no entorncamento lá, esta estrada foi aberta braçal.

 

As mesmas qualidades oferecidas por uma paisagem que tivessem sido gratas ao homem pré-histórico são igualmente caras ao homem moderno, que procura esses sítios tanto com a finalidade de se assentar quanto para o moderno, nômade e sofisticado exercício de atividades turísticas. Os recursos materiais buscados pelo homem primitivo na paisagem são os mesmos que atraem o homem moderno. O clima, o relevo, a água, os solos para plantio, a possibilidade de abrigo. Os recursos animais e vegetais fornecidos pela caça, pela pesca, pela exploração e cultivo da terra e da vegetação, para alimentação, combustível, medicamento, confecção de vestuário, ornamentos, produção de artefatos, tintas.

 

De forma análoga às qualidades materiais, os atributos imateriais de um sítio, fascinantes ao homem primitivo, continuam a atrair o homem moderno. Dentre essas qualidades estão a segurança territorial e a beleza da paisagem, um dos fatores mais fortes de atração para o ser humano. O que é cultural é natural. Toda e qualquer atividade ou produção cultural tem suas fontes materiais ou imateriais na natureza. Reciprocamente, o que é natural é cultural. Todos os elementos e relações existentes na natureza somente podem ser conhecidos pelo ser humano, pela cultura, que pode conferir a eles significação.

 

Quem lida com patrimônio cultural não considera o conjunto edificado e o aglomerado humano de forma destacável do contexto ambiental do cerrado e do quadro natural local, com o qual mantêm relações múltiplas, íntimas e recíprocas, constituindo uma complexa organização social que envolve o meio urbano em seus diferentes substratos espaciais e temporais; que apresenta modos de vida, habilidades e formas de conhecimento e de uso de recursos naturais peculiares, indissociavelmente relacionados ao meio físico e não físico. A arquitetura vernacular gera um modo de ser urbano exclusivo e o monumental, mesmo que presente em um monumento isolado, não constitui a tônica da abordagem.

 

Sob um ponto de vista ético é perfeito que se preservem ecossistemas e que, quando ameaçados, o predador seja excluído, mesmo que esse predador seja o homem. Uma paisagem cultural é, contudo, um sistema complexo no qual são igualmente importantes a obra da natureza e a humana, desde que esta se dê sob a forma de um convívio harmonioso e equilibrado na qual a utilização dos recursos não seja antagônica à integridade e autenticidade do sítio. Os sítios de valor cultural devem ser objeto de uma leitura muito específica, não apenas especial como se faz em planos de manejo mas deve-se aprofundar-se, de forma literal e não figurada, em níveis subterrâneos para levantar testemunhos de ocupações humanas pretéritas pela arqueologia e, pela paleontologia, para identificar paleoambientes que antecedem a presença humana no planeta.

 

A preservação de uma paisagem cultural se justifica conforme seu grau de integridade e autenticidade. A paisagem que vistoriamos em Terra Ronca não revelou nenhuma degradação de suas qualidades pela ação humana tradicional. A degradação de certas áreas é causada por usos recentes, como na visitação de grutas ou nos cultivos de agricultores gaúchos, cujas ações degradam áreas circunvizinhas do parque, como os chapadões do topo da Serra Geral. As repercussões indiretas das formas de agricultura praticadas do lado da Bahia são muito mais adversas à Serra Ronca do que a ação direta dos lavradores nativos. Cultivando soja intensivamente, os gaúchos desmatam, jogam lixo pelas penedias, poluem e contaminam com agro-tóxicos nascentes e veredas goianas.

 

Muito se descuida do valor de antigas cepas de espécies vegetais e animais domésticas. É perfeitamente aceitável que se façam altos investimentos para proteger espécies selvagens ameaçadas mas ninguém se preocupa com o desaparecimento das variedades domésticas. Quantas laranjas, mangas, limões e outras frutas comuns há uns quarenta anos desapareceram só deixando lugar a uma ou outra variedade comercialmente compensadora. As antigas mexericas deram lugar às poncãs. “Aspectos aparentemente insignificantes da cultura e da natureza assumem proporções bem mais amplas dentro do conjunto mundial. A ciência moderna recorre, cada vez mais, aos estudos de etno-biologia na tentativa de descobrir alternativas de novas espécies para uso econômico, sobretudo medicinal. O conhecimento das espécies vegetais nativas e cultivadas de uma região constitui ponto básico para sua proteção. Diferentes variedades de mandioca, de manga, de banana, de galinhas caipiras são tão importantes e dignas de proteção quanto as grandes paisagens ou os conjuntos históricos Tem havido uma grande perda de raças domésticas da qual o homem muito virá a lamentar-se. (...) Galinhas, jumentos e até cachorros vira-latas são animais cuja adaptação se faz ao longo da história do homem que os introduziu conforme suas necessidades e a adversidade do ambiente. (...) Quando se fala em extinção de espécies pensa-se apenas na fauna e flora selvagens sem se lembrar dessas criaturas das quais o homem depende tão intimamente e que o acompanham em sua aventura sobre o planeta.

 

Os animais domésticos da região de Terra Ronca deveriam ser melhor conhecidos e valorizados. Os fazendeiros criam vacas, cavalos, burros, porcos, galinhas e cães que não foram hibridados em laboratórios mas surgiram de uma seleção espontânea e natural que os adaptou perfeitamente ao ambiente local. Um animal como a cadela Campina, que foi achada em um campo de futebol, ou o cão Tarzã, ambos de São João, podem representar um importante patrimônio genético. Os nativos dão a essas cepas o nome de cachorro curraleiro ou pé-duro e ninguém imagina que podem ser uma raça melhor do que breeds de importação, só que são híbridos nativos e perfeitamente adaptados ao ambiente local. Também a maneira como os animais domésticos são utilizados varia de lugar para lugar. “Os carros de boi daqui da região de vocês é diferente dos de lá. Bacana, com dois bois arrastando. Eles já sabe até onde vai levar, arrastando. Os boi...” “A galinha é uma bichinha que enxerga demais. Parece que ela tem uma visão assim que ela vê a coisa de longe e vai bater lá.” “Não é que aqui não tenha gatos. Eles é que não é bobo de sair por aí com tantos cachorros para dar uma corrida neles.

 


 

II - Bens De Natureza Imaterial

 

Modos de fazer

 “Cavador de milho, que está fazendo?

Há que milênios vem você plantando.

 

Pai da terra.

Filho da terra.

Ascendente da terra.

Descendente da terra.

Ele, mesmo, terra.

 

Planta com fé religiosa,

Planta sozinho, silencioso,

Cava e planta.

Gestos pretéritos, imemoriais.

Oferta remota, patriarcal.

Liturgia milenária.

Ritual de paz.

 

Em qualquer parte da terra

um homem está sempre plantando,

recriando a Vida.

Recomeçando o Mundo.

 

 

 

A região de Terra Ronca não é apenas um espaço físico e biológico como é reconhecida pela criação de um parque estadual. É também um repositório de modos de vida, testemunhos da peculiaridade cultural local, onde, de forma viva e integrada à cidade e às edificações onde se preserva, de forma única e autêntica, a identidade e o conhecimento cultural do ecossistema do cerrado, por reunir uma comunidade que detém conhecimentos etno-botânicos tradicionais sobre os recursos naturais em especial sobre espécies botânicas de inestimável valor e potencial para a ciência e economia. “A cultura tradicional e popular é o conjunto de criações que emanam de uma comunidade cultural fundada na tradição, expressas por um grupo ou por indivíduos e que reconhecidamente respondem às expectativas da comunidade enquanto expressões de sua identidade cultural e social; as normas e os valores se transmitem oralmente, por imitação ou de outras maneiras. Suas formas compreendem, entre outras, a língua, a literatura, a música, a dança, os jogos, a mitologia, os rituais, os costumes, o artesanato, a arquitetura e outras artes.

 

Não apenas o meio natural apresenta aspectos singulares e peculiares mas também o conhecimento humano e as formas de utilização de recursos constituem um patrimônio cultural de inestimável valor. Grupos tradicionalmente instalados em locais ermos nos quais lograram sobreviver às custas de árduo aprendizado no convívio com a natureza, acabam por estabelecer formas peculiares de relação com o meio e os recursos naturais que geram saberes de cuja perda ou degradação o mundo um dia virá a ressentir-se.

 

Sob o ponto de vista cultural é tão árida a preservação exclusiva do patrimônio biológico quanto seria, sob um ponto de vista ecológico, a preservação exclusiva de questões culturais como cultivos agro-pastoris, sem se considerar a natureza que os envolve. Muitos são os saberes e fazeres que os nativos estabeleceram em relação às plantas de Terra Ronca. Correspondendo às elevadas taxas de biodiversidade, há incontáveis formas de utilização dos recursos locais. Nosso guia revelou profundo conhecimento sobre a flora local, prestando informações sobre valores econômicos das plantas. Naquela miniatura de Pindorama, há muitas espécies de palmeiras e coqueiros. Em rápido contato com moradores soubemos que o coco-palmeira dá óleo, paçoca, castanha para comer; o coco-indaiá, remédio para a sapeca do gado. Tira a gosma da madeira e dá para o gado beber. O dendê é para fazer beiju. Do buriti se faz o doce e um vinho. “Gostoso, o doce. Melhor ainda, é o vinho. Do pé, abre um buraco e tapa. Deixa uma vasilha e um pouquinho depois toma. É melhor que a água de coco”. Há ainda outras palmeiras como a macaúba. “Aqui nestes gerais, aqui tem muitas fontes de alimento: tem o puçá, o pequi, o buriti. O ar’ticum que a gente chama de cascudo. O coco-palmeira, o coco-catolé. Tem o caju, tem a marmelada, tem o jenipapo, goiaba nativa, tem o baru, tem o jatobá, tem o chichá, a mutamba, a cagaita. Tem a pitomba também, o coco-azedinho, a gente come e rói a bagemo macaúba, o grão-de-galo, o bureré, que é puxa-puxa que a gente trata aqui. A raiz dele é remédio. Uma vez veio aqui um caminhão de fora prá levar a raiz dele. É antibiótico. Eu mesmo estou pondo aqui na minha perna como antibiótico, com barbatimão. Dentre as árvores, o pau-terra, de folhas perenes, é usado para sombrear e é remédio para desinteria. A folha-miúda, para diarréia. O pau-santo cura picada de cobra. O pau-d’óleo é remédio para estupor e até câncer. Usa o óleo. O pacari-da-mata e o do cerrado servem para gastrite. A sicupira é antibiótico de primeira. A mamoninha é um “pau usado para fazer cinza para tirar a dicoada para fazer sabão com a fruta do tingui. ” O jacaré é madeira de lei para cercas. O pereiro, madeira para cerca. O jatobá-da-mata tem o fruto muito mais gostoso e o tronco mais fino que o do jatobá-do-campo. Os animais também se beneficiam das diversas espécies. O gado gosta do fruto da mutamba. Da fruta do pau-pilão também, que é comida por veado, paca, cotia. O macaco come chichá, o caitetu gosta das vagens do tamboril. O pau-pombinho e a pimenta-de-macaco atraem e alimentam as aves.

 

Caso se fizesse um levantamento das diferentes formas de conhecimento etnobiológico da região, muitas informações iriam enriquecer atividades como, por exemplo a culinária e a indústria farmacêutica. Muitas não passam de crendices como o que nos foi relatado sobre uma ave chamada coã cujo canto pressagia funestos acontecimentos que só podem ser evitados quando se coloca um chifre no fogo, o que não significa que sejam menos densas de valor e significação.

 

 

Celebrações

“Aqui também é costume passarem os habitantes da povoação

a maior parte do tempo nas suas fazendas ou engenhos.

Vêm à aldeia somente no tempo das grandes festas religiosas, para se mostrarem com toda a pompa

que ainda permite o seu empobrecimento. ”[16]

 

Bem aventuradas gentes para as quais cada toca

transforma-se em uma ermida,

cada risco é uma cruz,

cada penha um altar

e cada pedra uma imagem...

Viagem Filosófica. Alexandre Rodrigues Ferreira. 1776.

 

O importante intercâmbio de valores humanos presentes há cerca de três séculos detém um testemunho único de uma tradição cultural existente e que pode incorporar outras tradições culturais anteriores já desaparecidas. A vida e cultura da população são diretas e tangencialmente associadas a tradições vivas, decorrentes, desde os primórdios do surgimento deste conjunto, de uma crença, de um fervor religioso que constituem, por si só, um patrimônio excepcional imaterial, a veneração, na gruta de Terra Ronca, de Bom Jesus da Lapa e Nossa Senhora Aparecida. A Sala dos Milagres, onde se guardam as muletas dos miraculados, é uma espécie de sala a qual se chega por uma fenda nas paredes da caverna, um impressionante testemunho do poder da fé. Adentrando-se a caverna há uma mina dita de água benta, onde peregrinos se persignam e purificam.

 

A Caverna de Terra Ronca é importante local de peregrinações no roteiro religioso do país, sendo que a romaria ocorre entre os dias 1 a 6 de agosto A primeira missa foi celebrada na região antes mesmo de existir qualquer igreja. Obra de um padre que veio a cavalo tornou-se tradição anual, atraindo fiéis e moradores dessa e de outras regiões para batismos, casamentos e pagamento de promessas, que antes não tinham onde receber os sacramentos. Para a população local é um elemento de inestimável valor biográfico, referência à vida de cada família. Segundo soubemos, muitas pessoas encontravam seus pares na última hora, procurando o padre que celebrava vários casamentos em uma única cerimônia. “Isto aconteceu com meu pai, José Francisco Rosa e minha mãe Joanilda Vieira dos Santos.” [17]

.

A força criativa da espiritualidade tem na Gruta da Serra Ronca sua justificativa mais expressiva e no altar de Bom Jesus da Lapa o mais vigoroso símbolo. A gruta é o frágil fio que liga, ou separa, o homem do mundo divino, o terreno do celestial, a terra do céu, as profundezas dos páramos. A festa transcende a definição de festa religiosa, católica, etnográfica, folclórica ou qualquer outra que se lhe pretenda imputar. É o somatório de todas as formas humanas de ser e de se por no mundo e é tendo como fulcro esta festa, exemplo da grandeza com que a fé se manifesta mesmo no mais humilde dos seres humanos, que deve ser empreendida a justificativa para o excepcional valor da Gruta como patrimônio imaterial e como local de celebração.

 


 

RECOMENDAÇÕES

 

 

Recomendações para o Conjunto Urbano de São Domingos

 

·                                O órgão de patrimônio histórico de Goiás deveria promover o tombamento estadual do conjunto urbano do entorno da praça que, a nosso ver, reúne valores suficientes até mesmo para um tombamento nacional.

 

Recomendações para o Conjunto Urbano de São João Evangelista

 

·                                São João Evangelista deveria ser objeto de um planejamento que preservasse e incentivasse a arquitetura em moldes tradicionais e vernaculares, pois suas edificações correm o risco terem elementos originais substituídos por elementos industrializados, por uma desagradável arquitetura híbrida.

·                                O maior valor local, a alma de seu povo, embora quase impossível de se preservar em contato com o turismo, poderia ser objeto de um trabalho de reconhecimento explícito e de auto valorização.

 

Recomendações para as Cavernas

 

Do teto de umas poreja,

solta no tempo,

agüinha estilando salobra,

minando sem-fim num gotejo, que vira pedra no ar,

 se endurece e dependura por toda vida. [18]

 

 

·                                Considerando-se que a forma como o IBAMA conduz a questão espeleológica _ com mais ênfase sobre a utilização do que a preservação e, considerando-se que as cavernas mais bem preservadas do país, na região de Bonito, se deve à ação do IPHAN que, por serem tombadas, definiu restrições rigorosas no plano de visitação elaborado com base no documento Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental da Visitação Turística do Monumento Natural Gruta do Lago Azul – Bonito,MS[19] ; recomenda-se que o Ministério Público solicita o tombamento das cavernas de Terra Ronca, Angélica e São Mateus.

·                                Deverão ser construídas passarelas para suportarem o pisoteio e proteger o piso da caverna e suas concrecções, com benefícios também para a segurança dos visitantes.

·                                Pensando na dificuldade de locomoção encontrada por um visitante comum imagina-se o quanto deve ser duro para portadores de dificuldades motoras chegarem até os lugares que, em busca da cura, têm de atingir na parte da gruta que funciona como Santuário. Deveria ser prevista uma forma de acessibilidade, de preferência conduzindo-os a pontos mais profundos da caverna.

·                                Deverá ser providenciado parecer de especialista em geotécnica para avaliar desabamentos na entrada das grutas.

·                                 Mesmo que os guias locais sejam confiáveis, é uma irresponsabilidade abrir as grutas à visitação pública sem maiores medidas de segurança como, por exemplo, criar passarelas para evitar o pisoteio de concrecções como as conhecidas como represa em Terra Ronca, formações em travertino como conchas que jorram água uma por cima da outra.

·                                Também não se pode descuidar da segurança do visitante. Deverão ser efetuados estudos sobre a possível existência de leishmaniose moléstia que, segundo fomos informados, existiria em Terra Ronca.

·                                Não tendo tido acesso ao Plano de Manejo do Parque Estadual de Terra Ronca, desconhecemos o planejamento de uso público e não sabemos se está prevista alguma infra-estrutura para receber o turista junto às cavernas. Centro de Atendimento Turístico de São Domingos esteve fechado durante todos os dias em que estivemos na cidade.

·                                É necessário diversificar a visita do turista, levando-o não só a grutas mas também a cachoeiras, veredas, rios.

·                                Impactos sonoros e luminosos como fotografias com flashs, rojões e foguetes devem ser proibidos.

·                                Deverá ser criado um trabalho de vigilância constante na entrada das grutas.

·                                Na Gruta de São Mateus deveria haver interdição à visitação pública, permitindo apenas a investigação científica.

·                                Deverá ser implantado um sistema de sinalização fora das grutas e, no interior, em locais onde o público pode penetrar sem guia.

·                                É difícil orientar-se pelas estradas de terra da região quando se procura achar o parque e os locais turísticos. Deveria existir uma sinalização capaz de informar com clareza esses dados.

·                                Romeiros penetram sem guia nas cavernas durante as festas. Deve-se delimitar, no interior de Terra Ronca, os espaços interditos.

·                                A cobrança com valores incompatíveis aos danos perpetrados atrairá toda sorte de curiosos, mal educados, sem um mínimo de respeito, que andam com a cabeça batendo no teto destruindo espeleotemas. Esse valor insignificante leva à interpretação errônea de falta de valor do sítio. É imprescindível que a visitação seja precedida de trabalho de sensibilização sobre os valores únicos e não renováveis ali existentes.

·                                É indispensável que se proceda ao cálculo de capacidade de carga das frutas, nas quais não se deveria nunca entrar sem guia.

·                                Uma solução que muito contribuiria para melhorar as condições econômicas da região seria promover-se o chamado turismo chez l’habitant, optando-se por treinar e capacitar o nativo para hospedar, de forma típica, o visitante.

 

Recomendações para a Arqueologia

 

·        É imprescindível que se promova uma investigação mais aprofundada e pormenorizada da arqueologia em toda a região, sob a forma da contratação de serviços de especialistas. Todo material arqueológico coletado em Terra Ronca deverá ser objeto de mostra em museu regional a ser criado.

·        Deverá ser desenvolvido um trabalho de divulgação e valorização do patrimônio arqueológico, com sensibilização, envolvimento e participação comunitária.

·        As instituições que detém a guarda desse material deverão ser contatadas para que devolvam o material ou parte dele a Terra Ronca e ainda, que encaminhem os resultados de suas pesquisas para criação de uma biblioteca especializada em tudo o que afeta as questões regionais e assuntos afins.

 

Recomendações para a Paleontologia

 

·        É imprescindível que se promova uma investigação mais aprofundada e pormenorizada da paleontologia local, sob a forma da contratação de serviços de especialistas. Todo o material coletado em Terra Ronca deverá ser objeto de mostra em museu regional a ser criado.

·         Deverá ser desenvolvido um trabalho de divulgação e valorização do patrimônio paleontológico, com sensibilização, envolvimento e participação comunitária.

·         As instituições que detém a guarda desse material deverão ser contatadas para que devolvam o material ou parte dele a Terra Ronca e ainda, que encaminhem, para a criação de uma biblioteca especializada em tudo o que afeta as questões regionais e assuntos afins.

 

Recomendações para a Geomorfologia

 

·        Por constituírem feição típica e singular da paisagem goiana, as dolinas deveriam ser objeto de ações mais intensas de proteção e valorização por parte dos órgãos estaduais.

 

 

 

Recomendações para a Paisagem Cultural

 

Ora, no mundo,

de verdadeiramente interessante,

só existem duas coisas,

o Homem e a Natureza.

Eça de Queiroz

 

O especialista em questões culturais tem uma visão muito mais ampla e comprometida com o ser humano do que o ecologista A decisão de remoção das populações tradicionais da área do Parque de Terra ronca deveria ser objeto de séria reavaliação. Embora exista um ato legal decidindo pela remoção dos proprietários e não saibamos se houve um levantamento censitário que permitisse identificar os que detêm conhecimentos de valor e os que agem de forma predatória, por mais ameaçadora que se queira fazer parecer essa presença dentro da área do Parque, não se deve esquecer que:

 

·        Essas famílias estão aqui instaladas há muitas gerações. Foram pioneiras e desbravadoras da região sem terem, contudo, destruído suas qualidades naturais e paisagísticas.

·        Detêm conhecimentos únicos sobre o meio físico, a flora, fauna e os ecossistemas locais, ecossistemas que não excluem o habitante tradicional, com o qual estabeleceu um pacto de equilíbrio e harmonia.

·        São João Evangelista é uma localidade ainda mais antiga do que São Domingos, que é do século XVIII, e seu habitante não veio atraído pelo ouro como o de São Domingos mas pela terra.

·        Por mais intenso que pudesse ser o uso que dão à terra, as técnicas que detém oferecerão sempre uma possibilidade muito pequena de impactos quando comparadas às modernas técnicas adotadas nas regiões circundantes.

·        Esse impacto será sempre menos danoso do que a atividade turística mal orientada como a que ora se exerce, de forma crescente, sem planejamento, sem respeito a bens de excepcional valor como as cavernas e aos visitantes, e em contraste com a capacidade do parque e da região de suportar a franca expansão dessa atividade.

·        Em propriedades que visitamos são preservadas, de forma conjunta com artefatos de elevado valor cultural, formas de tecnologias patrimoniais e modos de fazer como as técnicas de fabricação de queijo, rapadura, cachaça, farinha, polvilho, doces.

·        A conservação da natureza no Brasil advém de modelos autoritários Proteger o sítio apenas sob o ponto de vista da conservação da natureza é eliminar importante exemplo de uma relação singular do ser humano com um quadro e recursos naturais peculiares, o que inclui atividades transcendentais como a adoração em lugares de celebração situados em áreas core do parque.

·        A arquitetura vernacular existente no interior do parque tem proporções equilibradas e cores puras. A presença das edificações é perfeitamente equilibrada pois se integram ao quadro natural sem ferir-lhe a harmonia. Antes servem para ressaltar a beleza das formas orgânicas. Caso demolidas darão lugar a conjuntos de proporções alheias como as da sede do parque.

·        Algumas edificações tradicionais abrigam um acervo de artefatos e conhecimentos que seriam por si só suficientes para fornecer material para a instalação de um grande museu regional. É norma internacional jamais se desvincular um bem de seu contexto vivo e original. Pelo contrário, bens móveis devem ser mantidos integrados às edificações que os contém e à paisagem.

·        Ao visitar um sítio como a Fazenda Angélica do Sr. Joaquim, cujo galpão guarda todos os artefatos tradicionais necessário à vida naquelas lonjuras, o turista pode não apenas conhecer os artefatos mas ser informado de seus usos de forma viva e direta, podendo ver, lado a  lado, o objeto e a árvore que forneceu a madeira para sua fabricação; o produto para o qual é utilizado e as fontes que forneceram sua matéria prima; pode ainda adquirir o produto, gerando novas formas econômicas de subsistência.

·        Formas patrimoniais de conhecimento devem ser conservadas conjunta e integradamente com valores naturais, sem prejuízos para um ou outro.

·        Retirar moradores tradicionais e substituí-los por fiscais de outros locais, atraídos apenas por salários e potencialmente subornáveis não irá assegurar proteção ao sítio. Antes se deve buscar o envolvimento e a participação dos moradores que já têm com a terra uma relação de gerações.

·        A insuficiente dotação de recursos humanos e financeiros do Parque Terra Ronca (que só dispõe de dois funcionários em seu quadro) é compensada pelos proprietários cuja presença é responsável não apenas pela manutenção do Parque tal qual ainda hoje se encontra como tem sido a única forma de se assegurar condições de guarda, vigilância e segurança.

·        Sem mencionar o quanto será onerosa aos cofres públicos a soma dos valores de contratação de guardas, sejam servidores públicos ou terceirizados, os níveis salariais oferecido a cada um será sempre baixo e poderá surgir muito mais motivos para que um guarda se sinta tentado a receber propostas para relaxar a vigilância do que poderia ocorrer o próprio dono da terra que nunca irá deixar de defender o que é seu, foi de seus pais e será de seus filhos. É a forma mais efetiva e econômica de se assegurar a guarda, vigilância e segurança do sítio.

·        A saída dos fazendeiros de suas terras pode implicar em mudanças para outros lugares que não São João. Desconhecemos se o projeto de do Parque pretende também expropriar e demolir as casas da cidadezinha mas, mesmo que não se pretenda, a saída dos fazendeiros pode resultar na mudança de seus familiares para os novos locais e a cidade poderá ir parar em mãos de forasteiros destruindo-se assim um dos mais importantes valores que é a identidade cultural como tem acontecido em todo o país.

·        É estranho como certos ecologistas têm uma visão da natureza que exclui totalmente o homem. Não compreendem que, após interferir em um ecossistema, o homem passa a ser um de seus elementos. A retirada de moradores tradicionais tem os mesmos efeitos da extinção compulsória de uma espécie biológica em um ecossistema equilibrado. A espécie extinta logo será substituída por outra espécie, um novo agente, oportunista e com comportamento e necessidades muito diferentes. Logo surgirão intervenções muito mais danosas como aterros sanitários, novas estradas,

·        A retirada dos fazendeiros e suas práticas culturais não significa excluir o homem do ambiente local. Logo serão substituídos por bandos de turistas desorientados ou por pesquisadores que ocorrerão a estudar a flora e a fauna de forma puramente acadêmica e desvinculada do modelo único de relação do homem com a natureza que se acaba de destruir. A natureza estará então condenada a outros e imprevisíveis impactos certamente mais danosos ao patrimônio genético e à qualidade paisagística. 

·        O único valor que permanecerá e irá crescendo é o imobiliário;

·        Os pequenos proprietários são proibidos de efetuar plantios e limitados em suas atividades sem qualquer compensação, ficando com seu meio de sustento prejudicado.

·        A remoção desses moradores provoca um impacto cultural e humano muito mais grave que suas presenças.

·        O pagamento pela terra desapropriada não indeniza pela perda de valores imateriais. É um ato de um capitalismo cruel e desumano que não considera valores muito mais sutis como os genealógicos, da história individual e familiar, de uma relação secular entre o homem e a terra.

·        Muitas feições aparentemente naturais resultam de intervenções dos proprietários, como o buritizal do Sr. Joaquim. Mesmo quando explora recursos da natureza o nativo tem tido a preocupação de restaurá-la e repor o que retira.

·        O proprietário, longe de seu ambiente, que irá comprar com o dinheiro recebido? Transportado para outro sítio, outro ecossistema desconhecido, muitas vezes já no fim da vida, não irá encontrar uma atividade substituta perdendo a identidade cultural e descaracterizando-se.

·        Há casos de parques não federais que foram entregues a gestores privados e, por meio de hábil manipulação política, logo acabaram por ser privatizados, sofrendo intervenções e assumindo novos usos bem diferentes da proposta inicial de conservação da natureza.

·        Os recursos hídricos, o mais valioso bem e futuro padrão monetário do planeta poderão atrair exploradores que poderão privatizar as fontes para venda de água, gerando impactos físicos e biológicos.

·        Sem considerar os lavradores como a única ameaça a Terra Ronca, bastava que qualquer cidadão cumprisse a rigorosa legislação ambiental vigente para evitar danos ao parque, obrigando-se qualquer infrator a pagar por isto.

·        A Chapada dos Veadeiros é um exemplo vizinho de como visitantes de classe média acabam por apossar-se de áreas contíguas a uma unidade de conservação, transformando-as em verdadeiros shoppings centers de mau gosto e má qualidade construtiva, expulsando, quando não escravizando, o nativo.

·        O STF acaba de anular um decreto presidencial que ampliava a área do Parque Nacional dos Veadeiros desapropriando “gente nascida e criada na região há cinco, seis gerações.[20]

 


 

Recomendações Finais

 

·        O Ministério Público deverá solicitar ao IBAMA que declare as grutas como Monumento Natural.

·        O Ministério Público deverá solicitar o tombamento das grutas de Terra Ronca, Angélica e São Mateus ao Iphan.

·        Mais do que um parque estadual, Terra Ronca deveria ser declarada como paisagem cultural brasileira. Considerando não existir na legislação brasileira essa forma de unidade de conservação conjunta da cultura e da natureza, a declaração poderia ser feita por meio de uma gestão compartilhada, com a criação de um Conselho de Gestão composto por órgãos estaduais e federais de cultura e meio ambiente e pelo Ministério Público.

 

 

 



 

[1] Carta de Veneza. Carta Internacional sobre Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios. ICOMOS. 1964.

[2] Carta de Petrópolis. Primeiro Seminário Brasileiro para Preservação e Revitalização de Centros Históricos. 1987.

[3] Declaração de Tlaxcala. Terceiro Colóquio Interamericano sobre a Conservação do Patrimônio monumental – Revitalização das pequenas aglomerações – ICOMOS.

[4] Minha cidade. Poemas dos Becos de Goiás e outras Histórias Mais. Cora Coralina.

[5] Carlos Drummond de Andrade. Fazenda. Lição de Coisas.

[6] João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas.

[7] Aires de Casal. Corografia Brasílica. 1817.

[8] George Gardner. Viagem ao Interior do Brasil. 1841.

[9] Viagem ao Século 18. Ecologia e Desenvolvimento. Ano 12 n. º 104.

[10] Opere complete. Leonardo da Vinci.

[11] Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental da Visitação Turística do Monumento Natural Gruta do Lago Azul – Bonito,MS. Campo Grande, 2002.

[12] Alziro Vieira de Souza, Guia Espeleológico.

[13] José Júnior Vieira Rosa, jovem nativo de São João Evangelista.

[14] Recomendação sobre a Conservação Integrada das Áreas de Paisagens Culturais como Integrantes das Políticas Paisagísticas. Comitê de Ministros do Conselho da Europa. 1995.

[15] Marguerite Yourcenar. Memórias de Adriano.

[16] Johann Emanuel Pohl. 1831. Viagem ao Interior do Brasil (Goiás).

[17] Segundo relato oral de José Júnior Vieira Rosa, jovem morador de São João Evangelista.

[18] Sagarana. João Guimarães Rosa.

[19] Campo Grande, 2002.

[20] Governo Lula quer manter Chapada. Jornal do Brasil, 15 de agosto de 2003.